sexta-feira, 15 de setembro de 2017


BASTIDORES

“Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar”... (Chico Buarque)

Ao abrir o jornal todas as manhãs o leitor se informa do que ocorre no mundo, sente-se feliz ou não, às vezes expressa seus sentimentos em Cartas à Redação; alguns preferem telefonar, mas a maioria simplesmente joga o jornal no lixo ou guarda para alguma função menos nobre. O que o leitor ignora são as dificuldades que o jornalista enfrenta para conseguir a informação ou fazer reportagens. Bem, isso no tempo em que o profissional saía em campo para fazer o trabalho que hoje se faz quase sempre por telefone. E até por e-mail.
Quando os ex-funcionários do jornal CIDADE DE SANTOS se reúnem, há sempre uma infinidade de histórias contadas e recontadas, que podem até enjoar os mais jovens, porém, sempre trazem boas lembranças aos envolvidos, direta ou indiretamente. Selecionei apenas algumas que mostram o espírito da equipe do famoso periódico.

FLAVIO RIBAS é mais conhecido por GAZETINHA, apelido que recebeu porque era correspondente em Santos da Gazeta Mercantil (1920-2009). Formado em Direito, foi para o jornalismo a convite de amigos e se tornou um daqueles profissionais que cavam notícia e cultivam fontes. Foi também chefe de reportagem, período em que às 18 horas, quando as máquinas de escrever estavam a mil por hora e uma nuvem de fumaça pairava sobre a redação, costumava tirar o relógio da parede e passar entre as mesas “incentivando” a moçada: “olha a hora, olha a hora”.  ,

ZEZÉ GONÇALVES – profissional de primeira linha, querida e respeitada entre os colegas. A grande paixão: Chico Buarque. Podia reclamar, mas nunca deixou de cumprir as missões que lhe eram atribuídas. O melhor exemplo de profissional que vai além dos limites: recebeu a pauta para cobrir um campeonato de xadrez e o fato de desconhecer o jogo não a intimidou, só a incentivou. O resultado foi tão satisfatório, que ganhou uma coluna de xadrez que se tornou popular. Os enxadristas a adoravam e a convidaram para participar de um campeonato. Declinou do convite com garbo sem que nenhum deles desconfiasse que ela não jogava. Esse é o verdadeiro espírito do jornalismo – escrever bem sobre tudo, mesmo que não domine a matéria.


JOSÉ ALBERTO PEREIRA SHEIK cobriu sindicato, porto e comércio exterior. Foi convidado pelo comandante Waldir da Costa Freitas para ir ao Polo Sul com a equipe do navio oceanográfico Professor Besnard do Instituto Oceanográfico da USP. O editor aprovou a viagem na companhia do fotógrafo Itamar Miranda. Tudo pronto, quando na véspera o editor deixou o cargo e o substituto cancelou a expedição, apesar de todas as argumentações apresentadas não apenas pela dupla. Resultado: motim a bordo do CIDADE DE SANTOS. Inconformados, os dois embarcaram para a Antártica. Foram demitidos. Aliás, a demissão se deu via rádio, em pleno Atlântico Sul, quando Pereira foi passar a primeira matéria. Na hora, decepção e tristeza; mas, cá entre nós, quantos jornalistas têm no currículo uma demissão via rádio em pleno Atlântico?

HILDA PRADO ARAÚJO  Plantão de sábado à noite (talvez 1975). Fui à assembleia do Sindicato de Trabalhadores em Pedreiras cuja sede era em um sobrado da Avenida São Francisco, perto da Rua D. Pedro II. Quando o comércio fechava, a prostituição corria solta em toda a região. O carro do jornal me deixou no local e subi até o auditório repleto de trabalhadores. Enquanto buscava um lugar para me acomodar, ouço o secretário gritar lá da mesa: “Dona, queira se retirar. Isso aqui é uma casa de respeito. Saia já.” Todos se viraram para ver quem era a ousada “trabalhadora da noite” que invadira a reunião. Nem me abalei; identifiquei-me, observei o constrangimento da diretoria e sentei antes mesmo de ouvir o pedido de desculpas, renovado mais tarde quando conversávamos sobre as decisões da assembleia. Foi inusitado e bem engraçado. 

HILDA, AGORA VAI! – Não lembro em que ano aconteceu – talvez 1976. O jornal preparava uma edição especial de Carnaval e lá fui eu entrevistar a diretoria do Bloco Agora Vai – que saía no sábado anterior à festança nacional. Marquei entrevista com o presidente em uma noite de ensaio para conversar com os foliões – era um bloco masculino. Eles se reuniam em um sobrado da Rua Senador Feijó, na Vila Matias. O segurança não me deixou entrar. Expliquei que tinha entrevista com o diretor, mas ele não se impressionou com o fato. O cronista social (Emanuel Leon) que estava no carro veio ver o que acontecia e se dispôs a subir para falar com o diretor sem que o segurança se opusesse. Quando voltou, disse que eu estava autorizada a entrar. As escadas terminavam no canto do salão imenso onde os foliões me recepcionaram com uma vaia fantástica. Parei surpresa e chocada porque não via nenhum motivo para aquela falta de educação. Uma porta se abriu e o diretor pediu silêncio; explicou que eu era jornalista e estava lá para escrever sobre o bloco. Depois de se desculpar, informou-me que mulheres eram proibidas nos ensaios. O AGORA VAI!  se tornara um bloco gay.

CACHORRADA  Recebi a pauta para uma matéria sobre a apresentação da Banda dos Fuzileiros Navais em algum lugar da cidade. O problema é que o jornal do dia já trazia uma reportagem completa sobre a banda: entrevista com o maestro, músicos; tratou do repertório e do roteiro de apresentações.  A mim coube ir ao local, certificar-me que o espetáculo acontecera, fora um sucesso ou não e que ninguém morrera no decorrer do evento. Para isso poderiam ter escalado um foca – pensei com meus botões. Cheguei, vi e ouvi. Um ótimo espetáculo, um sucesso enorme, mas pouca coisa para escrever que já não estivesse na edição do dia. Até que percebi um membro estranho entre os militares, bem comportado e tratado com muito respeito, digamos, até com carinho. Fui lá tomar satisfações com o comandante sobre aquela presença inusitada. Tratava-se do PASEP, o cachorro de estimação da Banda que aparecera um dia no quartel (Ilha das Cobras) e fora adotado imediatamente, com direito ao rancho e lugar garantido nas viagens. Só não tinha direito a soldo. Assim, PASEP salvou meu dia e fiz uma matéria que escapou da mesmice; entretanto, um amigo ex-fuzileiro não me perdoa até hoje; mas a vida é sempre assim, um dia é da banda e outro, do cão. É bom que se diga que a Banda dos Fuzileiros Navais é excelente; em 2009, apresentou-se em Paris nas comemorações doo Ano França-Brasil e em 2011, no Festival de Edimburgo, Escócia.

ESTRANHO VÍCIO Diagramadora, ela até hoje não suporta a história ouvir falar da história. A página de Variedades já estava fechada (pronta) quando o editor chegou com uma matéria com foto. “Tinha que entrar” porque era sobre uma homenagem ao jornal e o prêmio fora entregue a ele. Corre-corre para refazer tudo, substituindo a matéria com foto de um filme que ia estrear naquela semana, enquanto o motorista aguardava para levar o material para São Paulo. No dia seguinte, o resultado até poderia ter agradado, caso ela não tivesse se esquecido de trocar a legenda e, assim, sob a foto do garboso editor segurando o troféu lia-se: O estranho vício da Sra. Wardt (1971) – referente à foto do filme. Suspensão para a amiga. 

ADALBERTO MARQUES, repórter fotográfico, chegou entusiasmado à redação porque descobrira que índios do Litoral Norte de São Paulo realizavam uma festa tradicional em segredo (quase). Em português claro: festa pagã. Durante dias ele tentou convencer o editor a cobrir o evento. João Sampaio não gostava de dizer não e saiu pela tangente: se achar um repórter disposto a passar o réveillon no mato... Foi assim que Adalberto, eu e João Gonçalves (motorista) deixamos Santos na véspera de Ano Novo em direção à Ubatuba para a tal festa. Nem precisa dizer que ninguém na região sabia do que se tratava. Afinal, ela era secreta. Não voltamos de mãos vazias. Outra matéria com uma resistente comunidade indígena justificou nossa viagem.

ANTONIO AGGIO JR. – “Uma das visitas ao CIDADE, que mais emocionaram Lenine, Freddi e a mim foi a de Edgard Frederico Leuenroth (1881-1968) em 1968. Figura mítica, autor da primeira greve operária registrada no Brasil nos idos de 1917 e fundador dos únicos jornais anarquistas que aqui já existiram, nós o considerávamos a expressão máxima do libertário nestas plagas. Aos nossos olhos, ele, sim, era o paradigma do idealismo, pois não lutava para substituir uma ditadura por outra mais feroz e sanguinária. Mesmo enfermo, viajou de São Paulo a Santos para dar um abraço que nos levou às lágrimas. Deve ter sido de despedida, pois Leuenroth não demorou a falecer.” (Depoimento ao ERRE em 2012)




Portas fechadas. O Arquivo do jornal, onde o público podia ler os jornais da semana.  (Foto: mais de 2017.)

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