terça-feira, 6 de fevereiro de 2018


CARNAVAL DA REALIDADE

         Se alguém quiser saber como era o Brasil na primeira metade do século passado e fugir dos livros convencionais da história tupiniquim, pode muito bem fazer uma viagem carnavalesca pela música brasileira. Aconselho a ter do lado um velhinho que, além de se divertir com as recordações momísticas, servirá como guia esclarecedor nessa viagem no tempo. Embora seja uma transgressão autorizada, como diz Umberto Eco, o carnaval é uma boa época para sair por aí pondo o rei nu (não Momo).
Em “Alegria do nosso carnaval”, Milton Paz diz que o carnaval desfaz nossas tristezas. Será? Acho que ele frequentemente as expõe, denunciando a funcionária apadrinhada que só bate o ponto e não cumpre com suas obrigações, apontando o sofrimento da população por causa da falta de água, o sacrifício do trabalhador mal remunerado movido à marmita pobre e em trem lotado. E que tal lembrar as autoridades que ”Falta um zero no meu ordenado"? Apesar da inflação, vai tudo bem porque o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958... Se Dicró (Carlos Roberto de Oliveira) achou o culpado de tudo isso, o eleitor, Ary Lobo preferiu uma solução drástica, mudar para a Lua, mas não antes de apontar tudo que desgostava a população.


ALEGRIA DO NOSSO BRASIL
Heitor dos Prazeres
Gravação: Napoleão e seus Soldados Musicais, 1939.

 Carnaval,
Alegria do nosso Brasil
"Frevo", Cândido Portinari, 1958.
Que seduz
Com seus encantos mil
Que tudo faz esquecer
Que faz o trovador sonhar
E nos dá prazer.
E os clarins
Anunciam este grande dia,
De alegria sem igual,
Que todos nós festejamos,
Alegres cantamos
Em louvor ao carnaval.
O carnaval
É a nossa maior alegria
É o nosso ideal
O carnaval que desfaz
Até nossas tristezas
Neste mundo não há igual.

MARIA CANDELÁRIA
Klecius Caldas e Armando Cavalcanti.
Gravação Blackout, 1952.

Maria Candelária
É alta funcionária
Saltou de paraquedas
Caiu na letra "O", oh, oh, oh, oh
Começa ao meio-dia/
Coitada da Maria
Trabalha, trabalha,
Trabalha de fazer dó oh, oh, oh, oh
A uma vai ao dentista
Às duas vai ao café
Às três vai à modista
Às quatro assina o ponto e dá no pé
Que grande vigarista que ela é.


LATA D’AGUA
Luiz Antônio e Jota Junior

Gravação: Marlene, 1951.

Lata d'água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Lata d'água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Maria lava roupa lá no alto
Lutando pelo pão de cada dia
Sonhando com a vida do asfalto
Que acaba onde o morro principia

ZÉ MARMITA
Gravação: Marlene.

Saí de casa o Zé Marmita
Pendurado na porta do trem
Zé marmita vai e vem
Numa lata Zé Marmita traz a bóia
Que ainda sobrou do jantar
Meio-dia, Zé marmita faz o fogo
Para a comida esquentar
E Zé marmita, barriga cheia
Esquece a vida, num bate-bola de meia.

VAI TUDO BEM
Antonio Almeida e José Batista
Gravação: Jorge Goulart, 1959.


Vai tudo bem
 Pelo lado de lá.
Pelo lado de cá,
O que é que há

Não há água
Nem leite, nem pão
Carne não se come
Faz baixar a pressão
O café
 Vai de marcha a ré
Em compensação,
O Brasil foi campeão.

O POLÍTICO
Dicró e Pongá,
Gravação: Dicró. 

Dei cimento, dei tijolo
Dei areia e vergalhão
Subi morro, fui em favela
Carreguei nenê chorão
Dei cachaça, tira-gosto
E dinheiro de montão
E mesmo assim perdi a eleição
Traidor, traidor
Se tem coisa que não presta é um tal do eleitor
Prometi a minha nega que ia ser a primeira dama
Porém quando eu perdi, ela perdeu ate a cama
E achei o meu retrato no banheiro da central
Vou dar um coro no meu cabo eleitoral
Traidor, traidor
Se tem coisa que não presta é um tal do eleitor
Hoje eu tenho meus motivos, para estar injuriado
Porque eu só tive um voto e mesmo assim foi anulado
Só tem gente canalha, como tem gente ruim
Nem a minha mãe votou em mim
Ô mamãe eu me admiro a senhora
Se meus inimigos não votarem em mim tudo bem
Mas a senhora que depende de mim, não votar é sacanagem
Eu hein...
Os eleitores que não te conhecem, não votaram
Eu que te conheço vou votar? Ah! To fora...
Carlos Roberto de Oliveira , mais conhecido como Dicró, foi um cantor e compositor brasileiro de sambas satíricos. Fluminense.


EU VOU PRA LUA
Luiz de França e Ari Lobo 
Gravação: Ari Lobo, 1960.   


Eu Vou pra Lua
Mamãe, eu vou morar lá
Sair do meu Sputnik
Do Campo do Jequiá.

Já estou enjoado
Aqui da terra
Onde o povo a pulso
Faz regime
A indústria, roubo
A fome, o crime
Onde os preços
Aumentam todo dia
O progresso daqui
É a carestia
Não adianta mais
Se fazer crítica
Ninguém acredita
Na política
Onde o povo
Só vive em agonia

Na lua não tem

Nome abreviado
IPSEP, PM
Nem Cofap
Nem IPASE
Nem CASEP
Nem Coap
Nem contrabando
De mercadoria
Lá não falta água
Não falta energia
Não falta hospital
Não falta escola
É fuzilado lá
Quem come bola
E morre na rua
Quem faz anarquia...

Lá não tem juventude
Transviada
Os rapazes de lá
Não têm malícia
Quando há casamento
Na polícia
A moça
É quem é sentenciada
Porventura
Se a mulher for casada
E enganar o marido
A coisa é feia
Ela pega dez anos
De cadeia

E o conquistador
Não sofre nada...

Significado das siglas.
IPSEP – antigo Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco – atualmente bairro do recife, financiado com recursos da entidade em 1951.
Cofap – Comissão Federal de Abastecimento e Preços (COFAP). Instituída em 1951 no âmbito do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e com autonomia administrativa, era o órgão responsável pelo tabelamento dos preços dos bens de primeira necessidade. Na área estadual atuavam as  COAPs e na municipal, as COMAPs.
IPASE – antigo Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, órgão criado em 1938.
CASEP – um mistério. 


Um comentário:

jose carlos disse...

Alô Hilda,
estou me deliciando com essas reminiscências musicais, carnavalescas, dos anos 40/50 onde predominavam as marchinhas com suas letras satíricas.
Aproveitando o gancho do carnaval, com um viés sentimental, Benedito Lacerda acabou compondo uma letra: Carnaval da Minha Vida (1948), interpretada por Francisco Alves, falando sobre a quarta feira de cinzas (término do carnaval):

Quarta feira de cinzas, amanhece/Na cidade há um silêncio que parece,que o próprio mundo se despovoou/Um toque de clarim além distante, vai levando consigo agonizante, o som do carnaval que ja passou
Ainda bem que essa melancolia não mais existe nos dias atuais !!!!
Um grande abraço... Divirta-se ao lado de uma loira gelada