terça-feira, 15 de julho de 2025

CERBÈRE E WALTER BENJAMIN


Cerbère está situada nos Pirineus Orientais (França), na fronteira com a Espanha, em uma região cuja ocupação se perde no tempo. Há ruínas pré-históricas e, naturalmente, os romanos estiveram por lá. Aliás, o nome da cidade está relacionado à mitologia greco-romana, segundo a qual o cão Cérbero é o guardião do Hades (inferno). Mas existe muita discussão sobre o assunto e outras explicações, mas gosto desta porque me parece bem óbvia. 

A cidade fica em uma pequena baia no Mediterrâneo e, além da paisagem marítima, o que se destaca são os arcos da ferrovia, construída em 1880 (Eiffel). A rodovia corta a cidade, desce o morro por uma plataforma que cobre o cais e a marina. Duvido que alguém chegue de trem à cidade e desça a pé até a Avenida General De Gaulle sem que a população toda saiba. 

A economia baseia-se na vinicultura e no turismo – pesca, mergulho submarino e praias. Cerbère tem 1.560 habitantes* que, tradicionalmente, fazem a sesta. A vida retoma seu curso depois das 16h30. Da varanda do hotel ouço os sinos da igreja (que fica na encosta do morro) que chamam para alguma cerimônia; vejo o pai com o filho aproveitando o fim de tarde na praia, onde um pequeno grupo pratica mergulho. Aparecem algumas pessoas na praça onde se destacam hotel, restaurante, loja de lembranças...

Em um canto da praça há um grupo de esculturas em homenagem aos produtores rurais, que por longo tempo tiveram de fazer à mão o transbordo dos produtos agrícolas (especialmente laranjas) comercializados entre Espanha e França. O motivo: a diferença de bitola das duas ferrovias, que impedia a circulação de trens entre os dois países.

Há dois monumentos em homenagem aos cinco ferroviários fuzilados pelos nazistas durante a II Guerra Mundial (1939-1945). As lembranças do conflito estão presentes na cidade – Avenue du General De Gaulle, Rue 18 de Juin 1940 (data em que o general De Gaulle deu início à Resistência) etc.

        Na verdade, lembrei-me dessa viagem, ao ler um ensaio de Walter Benjamin sobre os livros e seus colecionadores.

Crítico, ensaísta e filósofo Walter Benjamin (1892-1940) teve uma vida atribulada. Judeu alemão, filho de comerciantes, com a ascensão do nazismo, seu trabalho deixou de ser publicado na Alemanha e em 1935 refugiou-se na França. Em 1939 havia perdido a cidadania alemã e estava praticamente na miséria. Com a deflagração da guerra e a posterior ocupação da França pelos alemães em 1940, Benjamin decidiu fugir com um grupo de amigos para Portugal, via Espanha, para se estabelecer nos Estados Unidos.

As dificuldades dessa viagem até Cerères deterioraram ainda mais seu estado de saúde e de espírito de Benjamin. Na última parte da jornada, ele mal aguentou subir os Pirineus e quando jornada clandestina terminou no posto de fronteira da Espanha – Cerbère-Portbou, todos foram barrados porque era essencial o visto francês de saída. Sem cidadania alemã e sem documentação francesa, a situação do escritor era dramática. Os fugitivos conseguiram permissão para ficar aquela noite na aldeia próxima. Benjamin, entretanto, sentiu-se encurralado – não podia sair da França nem voltar – e decidiu que o único caminho era a morte e para isso usou morfina. Foi uma agonia lenta.  Horas depois de sua morte, o grupo fugitivo conseguiu autorização para prosseguir viagem. Antes, porém, eles cuidaram dos despojos do companheiro de jornada e pagaram o funeral no cemitério de Portbou (Espanha).

Walter Benjamin nasceu em 15 de julho de 1892 em Berlim e morreu em 26 de setembro de 1940 em Cerbère.

         *Pelo censo de 2018, 1.351 habitantes. Crônica de 2006, ano em que cheguei à França procedente da Espanha. .


segunda-feira, 14 de julho de 2025

JÚLIO CÉSAR

Semana passada circulando na livraria da Unesp vi e comprei “Júlio César”, de Shakespeare (1564-1616). Nos anos de 1980, quando ainda existia o vendedor de livros e enciclopédias, que visitava residências, escritórios, redações e escolas com clássicos da literatura mundial, comprei dois livros com as principais tragédias e comédias de Shakespeare, onde infelizmente faltaram algumas obras como “Henrique V” e “Júlio César”. “Henrique V” comprei logo depois, mas Júlio César lamentavelmente ficou esquecido.  Li a peça no mesmo dia. Atemporal como são os clássicos, a obra provoca reflexões sobre o homem, o poder, a ambição e a inveja, o amor e a morte. 

Procurei mais informações sobre os eventos que levaram ao assassinato de César e notei que ele nasceu no dia 13 do mês que os romanos chamavam de “Quintilis”, quinto mês do calendário romano, que começava em março. Em 44 a. C., ano em que ocorreu o assassinato de César, o Senado Romano o homenageou trocando a denominação de mês de seu nascimento para Júlio, daí Julho em Português. Estava pensando em escrever algo sobre a peça e sobre César, quando abri o site do CINEMA LIVRE e vi que uma das novidades era exatamente o filme “Júlio César” (1953), de Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), autor do roteiro que manteve fiel ao texto original.

Que coincidência! E no elenco James Mason (Brutus), John Gielgud (Cássio) e o jovem Marlon Brando (Marco Antônio). O filme, indicado para cinco categorias, ganhou o Oscar de 1954 na categoria de Melhor Direção de Arte em Preto e Branco e Marlon Brando foi indicado na categoria de Melhor Ator. Assisti ontem ao filme. Um espetáculo imperdível. Marlon Branco não fica a dever nada ao desempenho de James Mason, um ator inglês shakespeariano, e a cena de seu discurso diante do corpo de César é impecável.

No filme, entretanto, há um anacronismo.  O ano é 44 antes de Cristo: um personagem tira da toga um códice que folheia e depois o guarda. Naquela época os romanos escreviam em pergaminho que eram enrolados e guardados em tubos. Foi no início da era cristã, século I d. C., que surgiram os códices que consistiam no resumo do conteúdo dos rolos feito em folhas costuradas, o que permitia o manuseio e o transporte mais fácil. Posteriormente, no filme, Marco Antônio tira da túnica o testamento de César escrito em um pergaminho como era usual na época.

            Meu interesse por Caio Julius Caesar (100 a.C-44 a. C.) é antigo, pois como jornalista não poderia ignorá-lo: ele foi o criador das famosas Acta Diurna Populi Romani ou Acta Publica, que publicava diariamente as atas do Senado, éditos, discursos dos tribunos e as ocorrências de interesse público da República – casamentos, óbitos, acontecimentos militares, falências, espetáculos e banquetes (coluna social?). Isso em 69 a.C. As informações eram escritas em tábua branca, denominada álbum e afixadas nos muros das cidades.

A Acta Diurna Populi Romani ou Acta Publica circulou até a queda do Império Romano que ocorreu em 476 d. C.



Marlon Brando na cena do discurso em louvor a César, que jaz a seus pés.


sábado, 12 de julho de 2025

AS COSTUREIRAS


Não sei qual superlativo dar à arte do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959). E quem desejar conhecer a grandiosidade dele pode visitar o Villa-Lobos Chanel, sem fins comerciais, ele é dedicado exclusivamente para divulgação da obra do compositor.

Foi lá que conheci “As Costureiras”, interpretado por um coral feminino de Trondheim, cidade norueguesa.

AS COSTUREIRAS
Música e letra Heitor Villa-Lobos.

Com alma a chorar!
Alegre a sorrir!
Cantando os seus males!
As costureiras, somos nesta vida!
Até amores unimos à linha,
Nós trabalhamos sempre alegres na lida!
Como alguém que adivinha,
O belo futuro que nos vai a sorrir!

Cose, cose, cose a costureira,
Cose a manga, a blusa, a saia,
Cose com interesse e mostra-te faceira,
Bem faceira a quem provares o ponteado,
O alinhavado, o costurado, o chuleado, o pregueado.


https://www.youtube.com/watch?v=RW6iU2m-2v4 
Trondheim Women Student Choir.



"As costureiras" (1950), Tarsila do Amaral (1886-1973).




sábado, 5 de julho de 2025

VIVA GABRIEL

Ah! O sol está de volta e o dia bem agradável, o que me levou à Vila Prudente para localizar um lugar onde terei de ir segunda-feira cedo. Para evitar problemas, fui “passear” por lá. A estação do metrô já é velha conhecida. Uma funcionária explica o caminho e diz que são apenas cinco minutos de caminhada. Lá fora, as coisas se complicam. Peço informações a três pessoas – nenhuma é do bairro. Já ia para um terminal de ônibus, quando vi o rapaz com uma sacolinha de comida. Resolvi tentar. 

– Bom dia. Você mora por aqui?

– Mais ou menos...

    Mais ou menos? Quem mora mais ou menos? Expliquei onde eu ia e ele logo ajeitou o celular, começou a pesquisar e localizou o endereço.

– Vamos atravessar a rua aqui porque é naquela direção – apontou a transversal.

Agradeci e já ia me despedindo, mas ele fez questão de me acompanhar. Perguntou meu nome e me vi na obrigação de perguntar o dele – Gabriel. Gabriel é uma simpatia. Deve ter uns 22 ou 23 anos. Expliquei que não conhecia a região, morava na Vila Mariana – estação que ele disse conhecer bem pois faz conexão do metrô com o ônibus para ir trabalhar. Ele presta consultoria em segurança (?). A rua vira uma ladeira íngreme que enfrento bravamente (treino todos os dias nas ladeiras da Aclimação, bem mais suaves). Então chegamos, agradeço muito a gentileza e desejamos boa sorte um para o outro.

Na volta, resolvi conhecer uma igreja que vi numa travessa e por isso cheguei à Praça Padre Damião Kleverkamp, pequena e agradável. A Igreja de Santo Emídio foi inaugurada em 1948. Santo Emídio (179 d. C.-309 d. C.) foi um bispo cristão, a quem se atribuem muitos milagres. Ele é o santo protetor dos terremotos, enchentes e chuvas intensas. Fora os terremotos, está no lugar certo. Damião Kleverkamp foi o primeiro pároco da igreja São Emídio. 

Na hora da foto, chegou o fusquinha ... Fazer o quê?

A preguiça fez com que eu descobrisse um suave caminho para retornar à estação do Metrô – quase plano! Detesto esses aplicativos que "indicam" caminho, mas sem Gabriel não teria chegado ao meu destino.  

sábado, 28 de junho de 2025

À PROCURA DE UMA PAPELARIA

 

Cresci ao lado de uma ótima papelaria – a "1001".  Isso muito antes que a agência McCann Erickson lançasse na década de 1970 a peça publicitária da lã de aço mais famosa do Brasil. Era lá que o meu material escolar era comprado. Havia ainda a Papelaria e Tipografia Reis. Tenho certeza de que não eram as únicas de Santos, mas é delas que me lembro bem.

Aqui em São Paulo conheci algumas ótimas, como a Papelaria Rosário, na Rua Xavier de Toledo no Centro Histórico, que infelizmente fechou em 2024. Outra que fechou funcionava no Conjunto Nacional, ao lado da Li
vraria Cultura. A Papelaria Umabel, na Rua Cristóvão Colombo, agora vende mochilas, e a Papelaria Estadão, no Viaduto Nove de Julho, resiste. Eu sempre senti grande atração pelas papelarias onde ia comprar lápis, tinta para as canetas tinteiro – só usei canetas esferográficas quando fui trabalhar no jornal –, fita para máquina de escrever, papel carbono, crepom, manteiga, de seda branco ou colorido (ah! os tempos de balões!). E as caixas de lápis de cor?

No ônibus a caminho do Centro Histórico me lembrei de duas pequenas papelarias pertinho da Sé; porém, como é sábado, não me preocupei em descer lá. Fiquei pela Rua Boa Vista, mas decidi atravessar o Anhangabaú e resolvi entrar no Shopping Light. Com tantas lojas, tudo é possível. Dito e feito! E achei logo no térreo – papelaria e livraria. Passei um bom tempo por lá procurando cartões e vendo as novidades da papelaria. Os cartões foram frustrantes: todos com mensagens descartáveis, óbvias, infantis... Alguns até bonitos, mas nenhum com o interior em branco para que se escreva a própria mensagem.

O que me chamou atenção foi a prateleira do material escolar: Na parte de cima, um objeto denominado “Caderno Argolado”, cheio de parangolés. Ora, ora vejam só! Lembrei-me com saudade do meu fichário, que me acompanhou no curso ginasial.

terça-feira, 17 de junho de 2025

FUI DE TÁXI

 


Se na Europa o viajante tem o conforto dos trens conectados a linhas de metrô para ir ou sair de aeroportos, nos Estados Unidos, a situação é diferente. Felizmente, os norte-americanos inventaram o shuttle, serviço de transporte bem mais barato do que táxi (geralmente vans), e que deixa o passageiro no hotel. Entretanto, em alguns lugares o serviço é disponível em horários que não são adequados (às 6 horas, às 13h etc.) e o jeito é usar táxi ou similares. Não se esqueça de que a praxe nos Estados Unidos é pagar a corrida e acrescentar de 15 a 20% de gorjeta.

Esse momento pode ser desfrutado como uma parte bem interessante do passeio seja qual for a cidade. Desta vez peguei vários táxis (algo raro nos roteiros europeus) e me vi sendo conduzida por motoristas de diferentes nacionalidades e todos muito satisfeitos com a nova vida que encontraram nos Estados Unidos, embora o trabalho seja exaustivo. O segredo é a oportunidade, que encontram nesse país feito de imigrantes. Assim, conheci um chinês, um vietnamita, um camaronês, um iraquiano, um indiano e um armênio.

O chinês mostrou-se o mais nervoso de todos e resmungou muito com os percalços do trânsito (muito bom por sinal) em Honolulu. O vietnamita falou com saudade das belezas do Vietnã. Nenhum ressentimento com o passado trágico entre o país de nascimento e o adotivo. O indiano surpreendeu-se quando elogiei o cinema da Índia. O iraquiano, quando soube que ia de San Francisco para Las Vegas de avião, me aconselhou a economizar dinheiro, usando o shuttle que servia os hotéis da região. O camaronês acha Las Vegas uma fantasia no meio do deserto, comentou a derrota da seleção nacional para o Brasil em 2014 e ainda estava estarrecido com a chacina que matara 59 pessoas no início da semana.

Um deles, quando soube que eu era do Brasil, suspirou nostálgico pela Xuxa. Xuxa? Foi-se o tempo em que falavam de Pelé ou de Reinaldo, mas Xuxa? Céus!

O armênio? Este não era de falar muito. Trânsito livre até o aeroporto, onde encontramos um imenso congestionamento para chegarmos ao terminal da empresa aérea que me traria de volta a São Paulo. Foi só então que perguntou para onde eu ia e aproveitei para perguntar a nacionalidade dele. 

Cá entre nós, o Trump nunca conheceu o país em que vive e muito menos as pessoas de verdade que trabalham na sua construção.

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Em português a grafia correta é táxi, mas por aí afora encontra-se sempre um taxi. O relato refere-se à viagem aos Estados Unidos feita em 2013.