quinta-feira, 29 de setembro de 2022

DIA DO CORAÇÃO

Para cientistas e médicos o coração é um músculo que funciona como uma bomba responsável pela distribuição do sangue pelo corpo, mas na Antiguidade acharam que ele era o centro das emoções e o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. O grego Empédocles (495 a. C.430 a. C.) foi quem apresentou pela primeira vez a ideia do fluxo e refluxo do sangue no corpo humano. Tudo isso, entretanto, faz parte da história do coração (por assim dizer) que desde 1967 pode ser transplantado, aumentando a expectativa de vida de cardíacos.

Hoje (29) é o Dia Mundial do Coração, criado pela Federação Mundial do Coração em 2019 para conscientizar e incentivar “indivíduos, famílias, comunidades e governos para criar uma comunidade global de heróis do coração – pessoas que prometem agir agora para viver mais e melhor no futuro, comprometendo-se a consumir alimentos saudáveis; fazer exercícios físicos; não fumar; controlar os níveis de colesterol”.

Excerto: “Passagem das Horas”, Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

“Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)”

Valfrido Pereira da Silva (1904-1972) e Alcir Pires Vermelho (1906-1994) são os compositores desta deliciosa música “O tic-tic, o tic-tac do meu coração” gravada por Carmen Miranda (1909-1955) em 1942. Coração que a traiu em 1955.




https://www.youtube.com/watch?v=pHmF65luS10 

“Antíoco I e Estratonice” (1774), óleo sobre tela do francês Jacques-Louis David. O rei macedônico é atendido por Erasístrato que, sentado ao lado da cama, dá o diagnóstico: as palpitações de Antíoco são causadas por Estratonice, a amada, que em pé observa a consulta junto à cama. 




terça-feira, 27 de setembro de 2022

CORAÇÃO (SAMBA ANATÔMICO)

O coração sempre pulsa mais rápido quando se trata de Noel Rosa (1910-1937). Noel morreu vítima da tuberculose aos 26 anos, mas nos deixou um valioso legado, que reúne dezenas de clássicos da música popular. Carioca de Vila Isabel (Feitiço da Vila), mais conhecido pelo seu lado boêmio, Noel Rosa em 1931 ingressou na Faculdade de Medicina, mas logo trocou os livros pela música (violão e bandolim). A passagem pela faculdade deve tê-lo inspirado a compor “Coração (Samba Anatômico)” em 1931.




https://www.youtube.com/watch?v=dZg-yexpGVw

CORAÇÃO

Grande órgão propulsor
Transformador do sangue venoso em arterial

Coração
Não és sentimental
Mas, entretanto, dizem
Que és o cofre da paixão

Coração
Não estás do lado esquerdo
Nem tampouco do direito

Ficas no centro do peito eis a verdade!
Tu és pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro

Eu afirmo
Sem nenhuma pretensão
Que a paixão faz dor no crânio

 mas não ataca o coração.

Conheci
Um sujeito convencido
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza
Que, por saber
Que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro
Não achando
Quem lhe arrancasse as veias
Onde corre o sangue impuro
Viajou a procurar de norte a sul
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.

 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

MEU CORAÇÃO...

Uma união perfeita da obra de Pixinguinha com a João de Barros, o Braguinha, resultou em uma das mais belas composições da música popular brasileira. Nem Pixinguinha lembrava ao certo o ano em que compôs o chorinho, pois em vários depoimentos as datas variam. A primeira gravação instrumental foi realizada em 1928 pela Orquestra Típica Pixinguinha – Donga. A letra, entretanto, só foi composta em 1936. Em outubro daquele ano, a cantora e atriz Heloísa Helena (1917-1999) participaria de um evento beneficente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e pediu a Braguinha uma canção inédita que a destacasse no espetáculo. Como Braguinha não dispusesse no momento de nenhuma, aceitou a sugestão de Heloísa Helena para criar versos para “Carinhoso”. Braguinha procurou Pixinguinha, que aprovou a ideia, e no dia seguinte Braguinha entregou a letra para Heloísa Helena. Em 1937, o cantor Orlando Silva (1915-1978) fez a primeira gravação de “Carinhoso”. Com arranjo de Radamés Gnatalli, o disco teve a participação de Pixinguinha (flauta), Luiz Americano (em um dos clarinetes), Garoto (cavaquinho) e Perrone (bateria).




https://www.youtube.com/watch?v=mGG3Di84wp8

Meu coração
Não sei por quê 
Bate feliz, quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim, foges de mim

Ah! Se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E muito e muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim


Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim, então,
Serei feliz, bem feliz.

domingo, 25 de setembro de 2022

CORAÇÃO

Não por acaso Sílvio Caldas (1908-1998) é um dos cantores consagrados no cenário artístico nacional do século XX. Fez parte da “Era do Rádio”. Dono de voz e interpretações maravilhosas, continuo a ouvi-lo com imenso prazer. Alberto Ribeiro (1902-1971) é o autor da letra deste “Coração”, que Silvio gravou em 1938. Ribeiro, entre outras composições, assina o clássico “Copacabana, princesinha do mar”. Ambos são cariocas.

CORAÇÃO

Coração, por que bates tão depressa
Se ela há muito te esqueceu.
Não vês que aquela mulher
Coração não tem, sequer
Desconhece o que é chorar
Bate mais devagar.


Coração, abre a porta da saudade,
Deixa entrar a ilusão.
Felicidade é canção a duas vozes,
Felicidade não foi feita para um só.
Não sendo assim, o amor será
Coração, sonho desfeito em pó
E nada mais.




https://www.youtube.com/watch?v=wNb2a2kYtu8

domingo, 18 de setembro de 2022

GOETHE E A ITÁLIA

 

Retrato de Goethe na Campagna, de autoria de Heinrich Wilhelm Tischbein, amigo que hospedou o escritor em Roma.

       Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) nasceu em Frankfurt Am Main, Alemanha. Aos 37 anos ele ocupava o posto de ministro do ducado de Weimar (Turíngia), trabalho que o entediava porque já era um escritor reconhecido na Europa. Seu primeiro livro “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774) é um marco da literatura alemã e inicia romantismo. Escrito da forma epistolar tem um forte componente autobiográfico aliado à ficção. O tédio do trabalho e o fim de um relacionamento amoroso foram decisivos para a “fuga” que empreendeu uma noite logo após seu aniversário para realizar seu grande sonho: conhecer a Itália. Goethe tinha uma sólida cultura: formou-se em ciências jurídicas, mas interessava-se por ciências naturais, arquitetura, artes e história entre muitas outras coisas. Falava francês, italiano e inglês e sabia latim e grego. 

Ele começa o diário de viagem (cartas que escrevia aos amigos) no dia 3 de setembro de 1786, explicando que teve que sair escondido porque do contrário não o deixariam partir. A aventura começou às três horas da manhã. “Munido apenas de um alforje e uma mochila de pele de texugo, lancei-me sozinho numa mala-posta e cheguei a Zwota às sete e meia, numa bela e tranquila manhã enevoada”. (Nos dias atuais, Zwota faz parte de Vogtlandkreis, na Saxônia.) Goethe usou o pseudônimo de Jean-Philip Möller. “Meu singular e talvez caprichoso semianonimato traz vantagens que sequer imaginei. Uma vez que todos se obrigam a ignorar quem sou e, portanto, ninguém pode vir falar comigo sobre mim, nada mais resta às pessoas do que falar de si próprias ou de temas que lhes interessam; assim sendo, fico sabendo  em detalhes o que cada um faz, ou o que quer se passe de curioso.”

A viagem nada tinha de turística, coisa que ainda não havia sido inventada. A jornada de Goethe tinha um objetivo mais nobre:  o conhecimento de si próprio e da Antiguidade. Entretanto, reconheço em seu relato o mesmo entusiasmo, a ansiedade do viajante diante do novo “...ao cair da tarde de 28 de setembro de 1786, às cinco horas do nosso horário, eu, proveniente do Brenta e alcançando as lagunas, avistaria Veneza, essa maravilhosa cidade insular; essa república de castores que, logo a seguir, eu estaria adentrando e visitando.” E Veneza não o desaponta. Sozinho, ele percorreu a cidade a pé procurando orientar-se “ao entrar e sair desse labirinto sem perguntar nada a ninguém, apoiando-me mais uma vez apenas nos pontos cardeais". Comprou um mapa da cidade: “Para estudá-lo, subi à torre de São Marcos de onde um espetáculo singular se descortina a nossos olhos. (...) em plena luz do sol, de modo que, mesmo sem um telescópio, pude divisar com clareza o próximo e o distante”.

Como grande escritor as descrições das cidades, dos campos, das montanhas, dos rios e lagos são precisas, elegantes. “Mantenho os olhos sempre abertos e registro bem em minha mente tudo o que vejo. Julgar, não desejo, tanto quanto me é possível não fazê-lo.” Seu pecado, ter passado poucas horas em Florença, mas anseia por Roma: “Não há maneira de alguém preparar-se para Roma senão em Roma”.

Já no final de outubro, próximo à chegada a Roma, Goethe faz uma observação sobre o cotidiano do viajante: “Sinto agora a temeridade que é caminhar por estas terras, sem preparo ou companhia. As diferentes moedas, os vetturini (cocheiros), os preços, as pousadas ruins, tudo isso constitui uma amolação cotidiana, só podendo fazer com que se sinta assaz infeliz aquele que, como eu, viaja sozinho e pela primeira vez por este país, onde esperava encontrar prazer infindável. Contudo, eu nada mais queria do que ver este país, qualquer que fosse o custo; e ainda que me arrastem até Roma preso à roda de Íxion, não desejo me queixar”.

ROMA

A ansiedade para chegar à Cidade Eterna faz com que o escritor se apresse: em Bolonha, onde um criado bem informado conduziu-o “em disparada pelas ruas da cidade e por tantos palácios e igrejas” que ele mal teve tempo de anotar os lugares que visitou e se pergunta se lembrar-se-á de tudo o que viu. Comenta, encantado, que “... a arte é como a vida: quanto mais se avança por ela, mais ampla ela se faz”. Entretanto, se os seus olhos se fartaram com a beleza, Goethe, acrescentou à bagagem seis quilos de pedras (baritina), que fascinaram o mineralogista.

            A paixão do escritor pela Itália foi-lhe transmitida pelo pai, que ornamentara uma antessala com vistas de Roma e agora ele via o que já conhecia há tempos (pinturas, desenhos e gravuras) aonde quer que ele fosse: “tudo é como eu imaginava e tudo é novo”. Sobre suas ideias: “nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão definidos, tão vivos, tão correntes, que poderiam passar por novos”. Em Roma, Goethe é recebido por um velho amigo, o pintor alemão Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1751-1829).

            De repente, Goethe deixa escapar outro motivo de sua pressa para chegar a Roma: as comemorações do dia de todos os santos (1ºde novembro). Como protestante, ele achava que, se os cristãos reverenciavam tanto cada santo em particular, nessa data houvesse uma grande festa para todos. “Como me iludi” – comenta. No dia seguinte (Finados) foi levado ao Palácio Quirinal onde o Papa celebrou missa em memória dos Mortos – o que não o agradou tanto quanto as obras de arte que pôde admirar longe da capela. Enfim, aos poucos, o escritor vai se socializando na cidade, perdendo-se pelas ruas em busca das belezas remanescentes da Antiguidade, visitando teatros, indo a jantares e fazendo pequenas viagens pelo entorno de Roma. Há um lado turístico, por assim dizer, nos movimentos dele pela cidade.

Não me estenderei sobre as mil aventuras que Goethe viveu durante uma estadia de quase três meses. Gostou tanto que teve sérias dúvidas se deveria ir a Nápoles, mas no dia 22 de fevereiro se pôs a caminho. Aproveita o trajeto para apreciar cada lugar por onde passa. Chega no dia 26 e, novamente, não esconde o impacto que a cidade lhe causa: “Perdoei a todos quantos perdem a cabeça em Nápoles, e lembrei-me comovido de meu querido pai, que preservou uma impressão indelével sobretudo das coisas que viu aqui e que hoje pude ver pela primeira vez”.

O Vesúvio atrai o mineralogista que se decepciona na primeira visita (2/03); retorna em 6 de março e depois no dia 20, quando o avisam de que ele está em atividade e dessa vez satisfaz sua curiosidade científica.  

 No dia 26 de março, Goethe embarca para Palermo, na Sicília, onde visitará várias cidades; entretanto, dessa etapa vale a pena cada linha de seus comentários sobre o que viu na propriedade do príncipe de Palagônia a leste de Palermo – único momento em que o viajante fica realmente indignado com o mau gosto – um castelo de horrores.   

        Enfim, o livro proporciona a possibilidade de uma viagem à Antiguidade e ao final da idade Média (a Idade Moderna começa a partir da Revolução Francesa) tendo como guia um homem extraordinário (esqueci de dizer que Goethe também era desenhista). Se fosse possível uma viagem no tempo e ele retornasse, reconheceria por certo as obras artísticas, mas dificilmente reconheceria as cidades por onde passou – Innsbruck (Áustria), Passo de Brenner (Itália), Bolzano, Trento, Verona, Vicenza, Pádua, Veneza, Bolonha, Perugia, Florença, Assis e... Roma. Nápoles e Sicília – Palermo, Catânia entre tantas outras.

"De que vale a contemplação sem a reflexão" – Goethe. 


Estudo dos perfis mediterrâneos feitos por Goethe em suas excursões por Roma e arredores. 






Viagem à Itália – 1786-1788, de J. W. Goethe, Companhia das Letras, 1999.



(Íxion, personagem da mitologia grega, que foi amarrado a uma roda e queimado por toda a eternidade por determinação de Zeus.)

sábado, 17 de setembro de 2022

SEMANA COM POESIA

Para terminar a semana com poesia, meu poeta preferido:  Fernando Pessoa, ou melhor, seu heterônimo Alberto Caeiro, ilustrada com "As bolas de sabão", pintura de Édouard Manet (1832-1883), acervo Museu Calouste Gulbenkian de Nova York. A tela é de 1867 e o menino, filho do artista. 

xxv

AS BOLAS de sabão que esta criança

Se entretém a largar de uma palhinha

São translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

 Amigas dos olhos como as cousas,

São aquilo que são

Com uma precisão redondinha e aérea,

E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,

Pretende que elas são mais do que parecem ser.

 

Algumas mal se veem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores

E que só sabemos que passa

Porque qualquer coisa se aligeira em nós

E aceita tudo mais nitidamente.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

SEMANA POÉTICA

José de Ribamar Ferreira,  Ferreira Gullar, nasceu em São Luís do Maranhão, MA, em 10 de setembro de 1930, e faleceu no Rio de Janeiro, em 4 de dezembro de 2016. 

TEU CORPO


O teu corpo muda

independente de ti.

Não te pergunta

se deve engordar.

É um ser estranho

que tem o teu rosto

ri em teu riso

e goza com teu sexo.

Lhe dás de comer

e ele fica quieto.

Penteias-lhe os cabelos 

como se fossem teus.

Num relance, achas

que apenas estás

nesse corpo.

Mas como, se nele

nasceste e sem ele

não és?

Ao que tudo indica

tu és esse corpo

— que a cada dia

mais difere de ti.

E até já tens medo

de olhar no espelho:

lento como nuvem

o rosto que eras

vai virando outro.

E a erupção

Que te surge no queixo?

Vai sumir? alastrar-se

feito impingem, câncer?

Poderás detê-la

com Dermobenzol?

ou terás que chamar

o corpo de bombeiros?

Tocas o joelho:

tu és esse osso.

Olhas a mão:

tu és essa mão.

A forma sentada

de bruços na mesa

és tu.

Quem se senta és tu,

quem se move (leva

o cigarro à boca,

traga, bate a cinza)

és tu.

Mas quem morre?

Quem diz ao teu corpo — morre —

quem diz a ele — envelhece —

se não o desejas,

se queres continuar vivo e jovem

por infinitas manhãs?



Barulhos, 1997.

Ilustração: O maratonista, acervo do Museu Nacional Arqueológico, Atenas.

A Banheira (1886), óleo sobre tela de Edgar Degas (1834-1917).

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

SONETO DO AMIGO

Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu em 1913 no Rio de Janeiro, cidade em que faleceu em 1980. Vinicius foi diplomata, poeta, escritor, cronista, compositor e boêmio.


"Vinicius de Moraes - por toda minha vida", exposição no Farol Santander, janeiro 2023.

Soneto do Amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...


"Louis, acho que este é o começo de uma bela amizade."  Final de "Casablanca"  (1942): Rick (Humphrey Bogart) e Louis (Claude Rains). 

SEMANA COM POESIA


Guilherme Álvares de Almeida nasceu em Campinas (SP) em 24 de julho de 1890 e faleceu em São Paulo em 11 de julho de 1969. Ao longo da vida foi advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta e tradutor.

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BRANCA DE NEVE

Eu te guardo no fundo da memória,

como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Amei-te... E amei-te, figurinha aluada,
porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada...
E és o primeiro sonho que sonhei.

Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

Que fui eu afinal? — Um pobre louco
que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação...

Procurei-a. Meus olhos esperaram
vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

E encontrei a Saudade: ia alva e leve
na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

E parecia morta: mas vivia.
Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

Sinto-me agora mais criança ainda
do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

É que o meu caso (estranha extravagância!)
é a tua história sem tirar nem pôr...
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.


Publicado no livro "Encantamento" (1925). Poema integrante da série II  Alma.


In: ALMEIDA, Guilherme de. Toda a poesia. 2.ed. São Paulo: Livr. Martins, 1955. v.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

SEMANA COM POESIA

 AMOR PASSAGEIRO

 Antônio Mariano Alberto de Oliveira nasceu em Palmital de Saquarema (RJ), em 28 de abril de 1857, e faleceu em Niterói, em 19 de janeiro de 1937. Foi farmacêutico, professor e poeta. É considerado um dos três maiores poetas parnasianos brasileiros, sendo os outros Olavo Bilac e Raimundo Correa. Que tal um amor embalado pelo ritmo de um trem?

Num Trem de Subúrbio

No trem de ferro vimo-nos um dia,
E amarmo-nos foi obra de um momento,
Tudo rápido, como a ventania,
Como a locomotiva ou o pensamento.

- Amo-te!
                Adoro-te!
                            A Estação Primeira
Surge
. Saltamos nela ao som de um berro.


Nosso amor, numa nuvem de poeira,
Tinha passado, como o trem de ferro.

 Alberto de Oliveira 

In: Poesias, Segunda Série. Rio de Janeiro, Garnier, 191

Locomotiva do Museu da Imigração, Mooca. São Paulo, outubro de 2007.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

SEMANA COM POESIA

 SILENCIOSAS E PERTURBADORAS

Olegário Mariano Carneiro da Cunha nasceu em Recife, PE, em 24 de março de 1889, e faleceu no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1958. Dividiu-se entre a poesia, a política e a diplomacia. Este soneto sem data, em que o poeta declara sua paixão por louras naturais ou falsas, deve ter sido escrito nos anos de 1930, época da Lei Seca a que ele se refere e antes da década de 1950,quando Marilyn Monroe começou a brilhar em Hollywood.

O Declínio das Louras

 

Por serem mais românticas e belas

De linhas mais sensuais e duradouras,

Entre viúvas, casadas, e donzelas

Prefiro sempre as raparigas louras.

 

Porque nas atitudes mais singelas

São silenciosas e perturbadoras.

E a gente sente que é por causa delas

Que o sol loureja as searas e as lavouras.

 

Em Hollywood, porém, na hora presente,

Andam as louras desaparecidas

De cabelos mudados de repente.


 

Será que a moda já não vale nada

Ou quem sabe se a lei contra as bebidas

Proíbe a venda de água oxigenada?

domingo, 11 de setembro de 2022

SEMANA COM POESIA


"Louis-Auguste Cézanne  Pai  do Artista Lendo", de Paul Cézanne
(1839-1906)

Embora não seja leitora atenta de poesia, Luís de Camões e Fernando Pessoa são dois gênios insuperáveis que não canso de ler. E para começar, Camões: Oh, como se me alonga de ano em ano.


Oh, como se me alonga de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda parece,
Da vista se me perde e da esperança.


"The empty chair", de Charles Spencelayh, pintor inglês (1865-1958).

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

A RAINHA

 

Eu era criança quando Elizabeth Alexandra Mary subiu ao trono da Inglaterra, Reino Unido, e por muitas décadas guardei a revista O CRUZEIRO. Como criança devo ter me encantado com a figura da realeza, mas como adulta, foi a personalidade dela que me chamou atenção. Nascer rei ou herdar uma coroa é uma armadilha tanto para o monarca quanto para o povo (no caso da Inglaterra, o rei reina, mas não governa). Se o herdeiro tem outros interesses na vida, terá que abdicar deles para assumir esse poder (fictício no caso específico). Elizabeth viveu o paradoxo de ser mãe de família e rainha, mas por sorte achou um príncipe encantado, pois além de bonito, Philip entendeu e assumiu com elegância o papel secundário. Elizabeth cuidou dos filhos e da Coroa. E como em toda família, enfrentou vários problemas, desavenças e momentos desagradáveis que ela soube enfrentar... Quando eventualmente passava os olhos pelo noticiário sobre ela, apreciava a sobriedade. No fundo, foi uma funcionária pública exemplar que exerceu com nobreza seus deveres até os 96 anos. Nada de aposentadoria compulsória. Nos últimos anos, admirei a elegância: a ousadia das cores das roupas e dos chapéus. Enfim, reis ou plebeus, ninguém escapa desse encontro final. Elizabeth II, Regina (1926-2022), foi uma figura emblemática. Será sempre a Rainha.















quarta-feira, 7 de setembro de 2022

BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA

"Independência ou Morte" (1888), óleo sobre tela de Pedro Américo (1843-1905). Pintura histórica, acervo: Museu Paulista.

  

“(...) Parabéns, ó brasileiro
Já, com garbo varonil
Do universo entre as nações
Resplandece a do Brasil (...)"*.


Infelizmente, não tão resplandecente quanto desejaríamos.


"Primeiros sons do Hino da Independência" (1922), óleo sobre tela de Auguste Bracet (1881-1960). Pintura histórica, acervo: Museu Histórico Nacional, RJ.


* Estrofe do Hino da Independência do Brasil. D. Pedro I é o compositor da música e a letra é de Evaristo da Veiga (1799-1837), poeta, jornalista e livreiro.



terça-feira, 6 de setembro de 2022

DONA LEOPOLDINA


Sessão do Conselho de Estado” – óleo sobre tela de Georgina de Albuquerque (1885-1962), pintora paulista (Taubaté). O quadro mostra a princesa Leopoldina, na função de regente nomeada por D. Pedro com os despachos da Corte que exigiam o retorno de D. Pedro a Portugal e determinavam o restabelecimento do status colonial no Brasil. Compõem a cena José Bonifácio, de pé diante dela, Martim Francisco (sentado), Clemente Pereira (atrás de Martim Francisco) e Montenegro, Manoel Farinha, Lucas Obes e Luís Pereira da Nóbrega. A obra foi executada para as comemorações do centenário da Independência. Acervo: Museu Histórico Nacional (Praça Marechal Âncora, RJ).

Nos 200 anos da Independência do Brasil, uma homenagem à mulher por trás do trono: Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda (1797-1926), a arquiduquesa da Áustria, que atravessou o Atlântico para se casar no Brasil com o príncipe português Pedro. Ela foi mais que esposa. Culta e inteligente, teve papel político importante e a confiança do segundo homem mais poderoso do Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1829). Antes de partir para Santos no dia 13 de agosto de 1822, D. Pedro nomeou Leopoldina chefe do Conselho de Estado e Princesa Regente Interina do Brasil, com poderes legais para governar o país durante a sua ausência. Em setembro em meio à crise, Paulo Bregaro, oficial do Supremo Tribunal Militar, na condição de correio-real, partiu do Rio de Janeiro com a missão de entregar três cartas a D. Pedro. Uma delas era de Leopoldina incentivando o marido a dar o passo decisivo para a independência do Brasil. As outras duas eram de José Bonifácio e de Antônio Carlos (1773-1845), que se encontrava em Lisboa. Bregaro encontrou o príncipe no alto do Ipiranga de volta para o Rio. 

(Foi nessa viagem, que o príncipe conheceu Domitila.)