quinta-feira, 30 de junho de 2022

 

Embora cansada do Facebook, reconheço que ele funciona bem para encontrar pessoas, avivar lembranças, recuperar momentos e experiências que a vida vai colocando nos escaninhos da memória. Caso do Ateneu Progresso Brasileiro, que formou muitas gerações de jovens de Santos. Nunca quis ser professora, mas a convite insistente de uma amiga que lecionava lá, acabei aceitando e por um semestre dei aula para uma classe do segundo ano primário (hoje ensino fundamental). Foi uma daquelas experiências ruins, porque algo de que não gostei de fazer, e ao mesmo tempo importante pois tive certeza de que jamais voltaria para uma sala de aula a não ser como aluna. Na época, fazia o Clássico no Canadá. De bom mesmo só o carinho dos alunos no dia dos professores e no final do ano. Guardei dois nomes apenas: Guilherme Navarro, que soube que se formou em Medicina, e Pedro, que me deu uma lembrança com um cartão que guardo até hoje. Graças à formação do grupo de ex-alunos na rede social lembrei da diretora Dilza Oliveira Zylberman, uma senhora que falava baixinho, era tão magrinha que parecia planar ao sabor de brisas. Faltou a foto de Jandira, creio que vice-diretora ou secretária da Instituição. O Ateneu funcionava num casarão da avenida Ana Costa que foi demolido na década de 1970 para a abertura de uma via de acesso à rua Bahia, no Gonzaga: rua Cláudio Doneux de Moura. No ano seguinte, fui convidada a continuar, agradeci e me despedi para sempre do ensino. Na lista de ex-alunos, vi vários amigos e conhecidos.

Ilustração de Norman Rockwell 


Norman Rockwell (1894-1978) foi o principal ilustrador da revista norte-americana “The Saturday Evening Post”, que circulou entre 1894-1978. Deixou uma obra extraordinária.


terça-feira, 28 de junho de 2022

TERÇA COM POEMA

 

IDADE MADURA

(Excerto)

Carlos Drummond de Andrade

As lições da infância

desaprendidas na idade madura.

Já não quero palavras nem delas careço.

Tenho todos os elementos

ao alcance do braço.

Todas as frutas

e consentimentos.

Nenhum desejo débil.

Nem mesmo sinto falta

do que me completa e é quase sempre melancólico.

 

[...]

 

Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade

com sua maré de ciências afinal superadas.

Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,

descobri na pele certos sinais que aos vinte anos

                                                                            não via.

Eles dizem o caminho,

embora também se acovardem

em face de tanta claridade roubada ao tempo.

Mas eu sigo, cada vez menos solitário,

em ruas extremamente dispersas,

transito no canto do homem ou da máquina que roda,

aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um

                                                                       número de casa,

e ganho.


Rua Sena Madureira, Vila Mariana, 2021.

Passagem da Avenida Paulista, Cerqueira César.

Bela Vista, um domingo qualquer, 2019.

Drummond: Antologia Poética. Livraria José Oympio Editora, 1983.
Fotos: Hilda Araújo.

terça-feira, 21 de junho de 2022

A CARAVANA MODERNISTA

 

O diplomata Graça Aranha (1868-1931) aposentou-se e retornou ao Brasil em busca de novas atividades, conheceu os jovens modernistas em São Paulo, apaixonaram-se e começaram a pensar em como tornar o Brasil independente das escolas literárias europeias, elas mesmas na vanguarda. Graça Aranha conhecia a pessoa certa para essa missão: o paulista Paulo Prado (1869-1943) – milionário, empresário, escritor, mecenas e moderno. Desses encontros concretizou-se a semana de Arte Moderna de 1922 que abalou o conservadorismo paulistano no seu templo: o Theatro Municipal. O tempo passou e o grupo achou que era preciso ir mais longe. Que tal a capital da República? Como? Nada melhor que o ninho dos escritores brasileiros: a Academia Brasileira de Letras, situada no Centro do Rio de Janeiro.

Mais uma vez os modernistas contaram com o apoio precioso de Graça Aranha, que era acadêmico (cadeira 38). Foi assim que no dia 19 de junho de 1924 desembarcaram no Rio de Janeiro cinco escritores modernistas para prestigiar uma conferência de Graça Aranha, na Academia de Brasileira de Letras que, sem dúvida, ficaria na história. Do trem procedente da Pauliceia Desvairada desceram o próprio Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Candido Motta Filho e Cassiano Ricardo. O grupo foi recepcionado na estação D. Pedro II pelos modernistas, que apoiaram a Semana de Arte Moderna, e em 1924 estavam estabelecidos no Distrito Federal. Lá estavam: Alceu Amoroso Lima, Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira, Murillo Araújo, Paulo Silveira, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Hollanda.

      “O Espírito Modernista” era o tema da conferência de Graça Aranha e mais da metade dos acadêmicos estava presente à sessão. O fato de ser acadêmico (fundador) não o impediu de declarar guerra à instituição. E embora um diplomata, não usou de meias palavras. “A fundação da academia foi um equívoco e foi um erro.” Considerou ainda que quarenta imortais era “consagração exagerada para tão pequena literatura” e não deixou por menos. “Se a Academia não se renova, morra a Academia”. Nem é preciso dizer que se instalou um tumulto na plateia: os modernistas carregando Graça Aranha em triunfo e enquanto os acadêmicos dando vivas à ABL erguiam nos ombros Coelho Netto, um dos alvos prediletos da jovem guarda dos anos de 1920. Ruy Castro em seu livro (ótimo) “Metrópole à beira-mar” conta que o próprio Coelho Netto já fizera sua autocritica em uma entrevista dez anos antes: “Passei a minha vida literária absorvido pela abundância, pelo delírio do adjetivo”. E continuou: “Preocupei-me mais com a roupagem do manequim e esqueci-me da anatomia do ser”. Concluindo que: “Obumbrei-me do adjetivo e esqueci-me do substantivo!” Os modernistas não se impressionavam facilmente e pregavam a necessidade de “descoelhonetizar” o Brasil. Chegou-se a dizer que Coelho Neto era “a negação mais completa da literatura no Brasil”. (Obumbrava-se?)

        O tom irreverente da conferência daquele dia não foi uma novidade na história da Academia que o crítico literário Agrippino Grieco (1888-1973) chamou de “morgue literária”, aconselhou o aproveitamento dos fardões dos acadêmicos falecidos  como pano de mesa de bilhar e ainda ameaçou suspender a doação para os presídios de livros recebidos de certos acadêmicos: “Era como punir os presos duas vezes”. Muito maldosamente o jornalista Paulo Silveira, que chamava a ABL de Epidemia Brasileira de Letras, dizia que o poeta Gonçalves Dias “para a felicidade geral da nação, não sabia nadar”. Gonçalves Dias morreu no naufrágio do navio Ville de Boulogne,  na costa brasileira.

        Uma história que foi notícia em todo o país. A Academia Brasileira de Letras sobrevive a todo tipo de críticas há 124 anos. Graça Aranha é considerado pré-modernista: seu livro de estreia foi Canaã (1902), um sucesso editorial na época. Graça Aranha foi convidado para fazer parte da ABL por falta de nomes para completar o quadro de 40 membros para a fundação da entidade. O maranhense nasceu em 21 de junho de 1868 em São Luís (MA).

“Metrópole à beira-mar – O Rio Moderno dos Anos 20”, Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


PS: Obumbrar: deixar pouco inteligível. Ter a mente anuviada. (Dicionário Michaelis.)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

FRIO, BANHO E TOSA.

No caminho para o almoço, vi o rapaz atravessando a rua com o amigo dele, um cachorro de porte médio muito bonito. Quase em frente à faixa de segurança há um salão que oferece banho e tosa, além de veterinário. A casa tem um pequeno recuo para estacionamento de dois carros. O rapaz foi para a entrada, mas o cachorro parou na calçada. O rapaz incentivou, puxou e o amigo dele simplesmente fincou as patas no chão e se recusou a entrar. Enfim, foi de colo. Banho e tosa no frio... Só para os mais fortes.


Brigitte, membro da família de amigos, após o banho.

domingo, 12 de junho de 2022

Cântico dos Cânticos




Cântico dos Cânticos

Ela 

Sua boca me cubra de beijos!

São mais suaves que o vinho tuas carícias,

e mais aromáticos que teus perfumes

é teu nome, mais que perfume derramado;

por isso as jovens de ti se enamoram.

Leva-me contigo! Corramos!

O rei introduziu-me em seus aposentos.

 

Coro

Queremos contigo exultar de gozo e alegria,

celebrando tuas carícias, superiores ao vinho.

Com razão as jovens de ti se enamoram.

 

Canção da amada

Ela

Sou morena, porém graciosa,

ó filhas de Jerusalém,

como as tendas de Cedar,

como os pavilhões de Salomão.

Não me olheis com desdém, por eu ser morena!

Foi o sol que me bronzeou:

os filhos de minha mãe, aborrecidos comigo,

puseram-me a guardar as vinhas;

a minha própria vinha não pude guardar.

 

Ambição do amor

Ela

Indica-me, amor de minha alma: onde pastoreias?

Onde fazes repousar teu rebanho ao meio-dia?

Para eu não parecer uma mulher perdida,

seguindo os rebanhos de teus companheiros.

Coro

Se não o sabes, ó mais bela das mulheres,

segue os rastos das ovelhas

e leva teus cabritos a pastar

perto do acampamento dos pastores!

 

Ele

Às parelhas das carruagens do Faraó

eu te comparo, minha amada.

Graciosas são tuas faces entre os brincos,

e teu pescoço entre colares.

Faremos para ti brincos de ouro

com filigranas de prata.

 

Exaltação do amor

Ela

Enquanto o rei está em seu divã,

meu nardo exala seu perfume.

O meu amado é para mim

como bolsa de mirra sobre meus seios;

o meu amado é para mim

como um cacho florido de alfena dos vinhedos de Engadi.

 

Ele

Como és formosa, minha amada!

Como és formosa, com teus olhos de pomba!

 Ela

             E tu, meu amado, como és belo,

como és encantador!

O verde gramado nos sirva de leito!

Cedros serão as vigas de nossa casa,

e ciprestes, as paredes.

Galanteios

Ela

Eu sou o narciso de Saron,

o lírio dos vales.

Ele 

Sim, como o lírio entre espinhos

é, entre as jovens, a minha amada.

Ela

Como a macieira entre árvores silvestres

é, entre os jovens, o meu amado.

À sua sombra eu quisera sentar-me,

pois seu fruto é saboroso ao meu paladar.

 

Amor apaixonado

Ela 

Ele me conduziu à casa do banquete,

onde a bandeira era para mim sinal de amor.

Restaurai-me as forças com tortas de uva,

revigorai-me com maçãs,

porque desfaleço de amor!

Sua esquerda apoia minha cabeça,

e sua direita me abraça. 

Ele

Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,

pelas gazelas ou corças do campo,

que não acordeis nem desperteis a amada,

antes que ela queira!

 

SEGUNDO CANTO

Primavera de amor

 

Ela

Atenção! É o meu amado:

eis que ele vem saltando pelos montes,

transpondo as colinas.

O meu amado parece uma gazela,

uma cria de gamo,

parado atrás de nossa parede,

espiando pelas janelas,

espreitando através das grades.

 Adiantando-se, o meu amado me fala:

Ele

Levanta-te, minha amiga,

minha formosa, e vem!

Eis que o inverno já passou,

cessaram as chuvas e se foram.

No campo aparecem as flores,

chegou o tempo da poda,

a rolinha já faz ouvir

seu arrulho em nossa região.

Da figueira brotam os primeiros figos,

exalam perfume as videiras em flor.

Levanta-te, minha amiga,

minha formosa, e vem!

Pomba minha, nas fendas da rocha,

no esconderijo escarpado,

mostra-me teu semblante, deixa-me ouvir tua voz!

Porque tua voz é doce, gracioso o teu semblante.

 

Coro

Agarrai para nós as raposas, estas pequenas raposas,

que devastam as vinhas, nossas vinhas em flor!

 

Apelo da amada

Ela

O meu amado é todo meu, e eu sou dEle

Ele é um pastor entre lírios.

Antes que expire o dia e cresçam as sombras,

volta, meu amado,

– imitando a gazela ou sua cria –,

para os montes escarpados!


Divagações

Ela

Em meu leito, durante a noite,

busquei o amor de minha alma:

procurei, mas não o encontrei.

Hei de levantar-me e percorrer a cidade,

as ruas e praças,

procurando o amor de minha alma:

Procurei, mas não o encontrei.

Encontraram-me os guardas que faziam a ronda pela cidade.

Vistes o amor de minha alma?

Apenas passara por eles,

encontrei o amor de minha alma:

agarrei-me a ele e não o soltarei

até trazê-lo à casa de minha mãe,

à alcova daquela que me concebeu.

Ele

 Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,

pelas gazelas ou corças do campo,

que não acordeis nem desperteis a amada,

antes que ela queira!


TERCEIRO CANTO

Cortejo nupcial

Coro

 O que vem a ser aquilo que sobe do deserto,

como coluna de fumo,

exalando mirra e incenso

e todos os perfumes dos mercadores?

 É a liteira de Salomão,

escoltada por sessenta guerreiros

dos mais valentes de Israel.

 Todos são espadeiros treinados para o combate;

cada qual leva ao flanco a espada,

por temor de surpresas noturnas.

 O rei Salomão mandou construir um palanquim

de madeira do Líbano:

 fez colunas de prata,

espaldar de ouro e assento de púrpura;

o interior foi carinhosamente adornado

pelas filhas de Jerusalém.

 Vinde, filhas de Sião, contemplar

o rei Salomão com a coroa,

com a qual sua mãe o coroou

no dia de suas bodas,

dia de júbilo para seu coração!


Descrição da amada

Ele

 Como és formosa, minha amada!

como és formosa,

com teus olhos de pomba,

na transparência do véu!

Teus cabelos são como um rebanho de cabras,

esparramando-se pelas encostas do monte Galaad.

 Teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas,

recém-saídas do lavadouro:

cada um com seu par, sem perda alguma.

 Teus lábios são fitas de púrpura,

de fala maviosa.

Tuas faces são metades de romã,

na transparência do véu.

 Teu pescoço é como a torre de Davi,

construída com parapeitos,

da qual pendem mil escudos

e armaduras de todos os heróis.

 Teus seios são como duas crias,

gêmeos de gazela, pastando entre lírios.

Ela

 Antes que expire o dia e cresçam as sombras,

irei ao monte da mirra e à colina do incenso.

Ele

 És toda formosa, minha amada,

e em ti não se encontra defeito algum.

Apelo do amado

Ele

 Vem comigo do Líbano, minha noiva!

vem comigo do Líbano!

Desce do cume do Amaná,

dos cimos do Sanir e do Hermon,

das cavernas dos leões,

das montanhas das panteras!


Encantamento

Ele

 Arrebataste-me o coração, minha irmã e minha noiva,

arrebataste-me o coração com um só de teus olhares,

com uma só jóia de teu colar.

 Como são ternos teus carinhos,

minha irmã e minha noiva!

Tuas carícias são mais deliciosas que o vinho;

teus perfumes, mais aromáticos

que todos os bálsamos.

 Teus lábios, minha noiva, destilam néctar;

em tua língua há mel e leite.

Tuas vestes têm a fragrância do Líbano.


Recanto de amor

Ele

 És um jardim fechado, minha irmã e minha noiva,

uma nascente fechada, uma fonte selada.

 Tuas plantas são um vergel de romãzeiras,

vegetação toda selecionada:

umbelas de alfena e flores de nardo,

 nardo e açafrão, canela e cinamomo,

toda espécie de árvores de incenso,

mirra e aloés,

os melhores bálsamos.

 A fonte do jardim

é como um manancial de água corrente

que brota do Líbano.

 Desperta, Aquilão!

E tu, Austro, vem soprar em meu jardim,

para que se espalhem seus aromas!


Apelo da amada

Ela

Que entre o meu amado em seu jardim

para comer dos frutos deliciosos!

Ele

 Já vou ao meu jardim, minha irmã

e minha noiva,

colher mirra e bálsamo,

comer do favo de mel, beber vinho e leite.


Coro

Amigos, comei!

bebei e embriagai-vos do amor!


QUARTO CANTO

Noturno

Ela

 Eu estava dormindo, mas meu coração velava.

Atenção! O meu amado está batendo.

Ele

Abre, minha irmã e minha noiva,

minha pomba, meu primor!

Pois tenho a cabeça borrifada de orvalho,

e do sereno da noite, minha cabeleira.

Ela

 Já despi minha túnica:

hei de vesti-la novamente?

Já lavei os pés:

hei de sujá-los outra vez?

 O meu amado meteu a mão na fechadura,

fazendo-me estremecer em meu íntimo.


Em busca do amado

Ela

 Levantei-me para abrir ao meu amado,

minhas mãos gotejando mirra;

de meus dedos a mirra escorria

sobre o trinco da fechadura.

 E então abri ao meu amado,

mas o meu amado já se tinha ido, já se tinha retirado.

Ansiei loucamente por falar-lhe:

procurei, mas não o encontrei;

chamei, mas não me respondeu.

 Encontraram-me os guardas que faziam a ronda da cidade:

espancaram-me e me feriram;

arrancaram-me o manto as sentinelas das muralhas.

 Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém:

se encontrardes o meu amado,

anunciai-lhe que desfaleço de amor!


Descrição do amado

Coro

 O que distingue dos outros o teu amado,

ó mais bela entre as mulheres?

O que distingue dos outros o teu amado,

para que assim nos conjures?


Ela

 O meu amado é branco e corado,

inconfundível entre milhares:

 Sua cabeça é ouro puro,

a cabeleira é como leques de palmeira,

é negra como o corvo.

 Seus olhos são pombos,

junto aos cursos de água,

banhando-se em leite,

detendo-se no remanso.

 Suas faces são canteiros de bálsamos,

tufos de ervas aromáticas.

Seus lábios são como lírios,

a destilar um fluido de mirra.

 Suas mãos são braceletes de ouro,

guarnecidas com pedras de Társis.

Seu corpo é marfim lavrado,

recoberto de safiras.

 Suas pernas são colunas de alabastro,

assentadas em bases de ouro.

Seu aspecto, como o Líbano, airoso como os cedros.

 Sua boca é só doçura; todo ele, pura delícia.

Tal é o meu amado, assim é o meu amigo,

ó filhas de Jerusalém.


Encontro com o amado

Coro

 Aonde foi o teu amado,

ó mais bela das mulheres?

Para onde se dirigiu o teu amado?

Iremos contigo à sua procura.

Ela

 O meu amado desceu ao seu jardim,

aos canteiros de bálsamos,

para apascentar nos vergéis e colher lírios.

 Eu sou do meu amado, e o meu amado é todo meu.

Ele é um pastor entre lírios.


QUINTO CANTO

Prendas da amada

Ele

 És formosa, minha amiga, como Tersa,

encantadora como Jerusalém,

esplêndida como as constelações.

 Aparta de mim teus olhos, porque eles me perturbam!

Teus cabelos são como um rebanho de cabras,

esparramando-se pelas encostas de Galaad.

 Teus dentes são como um rebanho de ovelhas,

recém-saídas do lavadouro;

cada um com seu par, sem perda alguma.

 Tuas faces são metades de romã,

na transparência do véu.


A predileta

Ele

 Sessenta são as rainhas,

oitenta as concubinas,

além de numerosas donzelas.

 Uma só, porém, é a minha pomba, o meu primor:

única é ela para sua mãe,

é o encanto de quem a gerou.

Ao vê-la, felicitam-na as donzelas,

louvam-na as rainhas e as concubinas.

Coro

 Quem é esta que surge como a aurora,

bela como a luz, brilhante como o sol,

esplêndida como as constelações?

Ele

 Desci ao horto das nogueiras

para examinar os brotos da várzea

e ver se as vides já brotavam,

se floresciam as romãzeiras.

 Sem me aperceber, minha fantasia me transportou

até às carruagens da nobre comitiva.


A dança

Coro

 Retorna, Sulamita, retorna!

Retorna, para podermos contemplar-te, retorna!


Ele

O que vedes na Sulamita,

quando dança entre dois coros?

 Como são belos teus passos nas sandálias,

ó filha de príncipes!

Os contornos de teus quadris são como colares:

obra das mãos de artista.

 Teu umbigo é uma taça redonda:

não lhe falte vinho mesclado!

Teu ventre é um monte de trigo, cercado de lírios.

 Teus seios são como duas crias,

como gêmeos de gazEla

 Teu pescoço é como uma torre de marfim.

Teus olhos são como as piscinas de Hesebon,

junto à Porta Maior.

Teu nariz é como a torre do Líbano,

sentinela sobre Damasco.

 Tua cabeça sobressai como o Carmelo;

e as madeixas de tua cabeça são como fios de púrpura,

que nos tanques um rei mantém amarrados.


Protestos de amor

Ele

 Como és formosa e encantadora,

ó delicioso amor!

 Teu talhe assemelha-se a uma palmeira,

e teus seios a cachos.

 Eu disse: "Vou trepar pela palmeira

e agarrar-me às suas frondes".

Teus seios devem ser como racemos na cepa,

teu hálito como a fragrância das maçãs,

 tua boca, como vinho generoso.

Ela

Ele flui suavemente para meu amado

deslizando pelos lábios dos adormecidos!

 Eu sou do meu amado,

e ele arde em desejos por mim.


Canção do encontro

Ela

 Vem, meu amado, saiamos ao campo!

Passaremos a noite nas aldeias,

 madrugaremos para ir aos vinhedos,

ver se as vides lançaram rebentos

ou se já se abrem suas flores,

se florescem as romãzeiras.

Ali te darei o meu amor.

 As mandrágoras exalam seu perfume,

e à nossa porta há mil frutas deliciosas,

tanto frescas como secas,

que para ti, meu amado, reservei.


Anelos de amor

Ela

 Quem me dera que fosses meu irmão,

amamentado aos seios de minha mãe!

Encontrando-te pela rua, beijar-te-ia,

sem que alguém me desprezasse.

 Eu me farei teu guia para introduzir-te

na casa de minha mãe, que me criou;

dar-te-ei a beber vinho aromático e suco de minhas romãs.

 Sua esquerda apóia minha cabeça,

e sua direita me abraça.

Ele

 Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,

que não acordeis nem desperteis a amada,

antes que ela queira.


SEXTO CANTO

Triunfo de amor

Coro

 Quem é esta que surge do deserto,

apoiada no seu amado?

Ele

Debaixo da macieira eu te despertei,

onde tua mãe, em dores, por ti se consumia,

onde se consumia em dores quem te deu à luz.

Ela

 Põe-me como um selo sobre teu coração,

como um selo sobre teu braço!

Porque é forte o amor como a morte,

e a paixão é violenta como o abismo:

suas centelhas são centelhas de fogo,

labaredas divinas.

 Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor,

nem rios poderão afogá-lo.

Se alguém quisesse comprar o amor,

com todos os tesouros de sua casa,

se faria desprezível.


A amada e seus irmãos

Irmãos.

Temos uma irmãzinha,

ainda sem seios.

O que faremos por nossa irmã,

quando alguém pedir sua mão?

 Se ela é uma muralha,

vamos construir-lhe ameias de prata;

se é uma porta,

vamos reforça-la com pranchas de cedro.

Ela

 Agora já sou uma muralha,

e meus seios são como torres.

E assim tornei-me a seus olhos

a mulher a encontrar a paz.


A vinha de Salomão

Ela

 Salomão tinha uma vinha em Baal-Hamon.

Entregou a vinha a cultivadores;

por seus frutos se pagaria

mil siclos de prata.

 Sobre minha vinha, porém, disponho eu:

para ti, Salomão, os mil siclos,

e duzentos para os cultivadores de seus frutos.

Intimidade do amor

Ele

 Tu que habitas nos jardins,

com companheiros a escutar a tua voz,

deixa-me ouvi-la!

Ela

 Vai depressa, meu amado,

– imitando a gazela ou sua cria –,

para os montes perfumados!


Bíblia: Antigo Testamento: Eclesiastes. 

Ilustração: Marc Chagall (1887-1985): Cântico dos Cânticos II (10), 1957.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

SEXTA-FEIRA POÉTICA

 

Luís Vaz de Camões (c. 1524-10/6/1580).


Sonetos

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

 

LUSÍADAS

CANTO PRIMEIRO

(106)

 

No mar, tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra, tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

 

 

Camões morreu no dia 10 de junho.

No mundo, 260 milhões de pessoas falam Português que vivem em nove países.  Angola: 25,02 milhões de habitantes; Brasil: 207.435 milhões de habitantes; Cabo Verde:  531.725 mil habitantes; Guiné-Bissau: 1,926 milhão de habitantes; Moçambique; 29.425: milhões de habitantes; Portugal: 10,5 milhões de habitantes; São Tomé e Príncipe: 198 mil habitantes; Timor Leste: 1,230 mil habitantes; Guiné Equatorial: 890 mil habitantes.

Ilustração de Lima de Freitas em OS LUSÍADAS. Abril Cultural, 1982.