sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

HORA DO PARTO? CHAME MADAME DUROCHER!



No Brasil do século XVI, havia uma escala de profissionais na área da medicina. No topo, naturalmente, o médico e o cirurgião formados pela Universidade de Coimbra; seguiam-se os práticos, sem formação acadêmica: os barbeiros sangradores e os cirurgiões barbeiros aos quais eram atribuídas as ocupações menos nobres; boticários, enfermeiros e parteiras compunham o restante do grupo. Não faltavam, entretanto, feiticeiros e benzedores procurados pelos que não acreditavam nas mezinhas receitadas ou porque a terapêutica aplicada era dolorosa demais. (Um “tratamento” comum para diarreia era o sacatrapo, que consistia em um pedaço pontiagudo de madeira revestido por um pano embebido numa mistura de pólvora, aguardente, pimenta e fumo que era introduzido no ânus do enfermo.*)
        Até meados do século XIX para ser parteira a única exigência legal era a comprovação de experiência e passar por um teste de habilidade que, segundo a pesquisadora Maria Lúcia Mott**, nem sempre era aplicado. Um belo dia a francesa Marie Josephine Mathilde Durocher (1816-1894), que vivia no Rio de Janeiro, desistiu de dirigir a loja que herdara da mãe e, na hora de escolher um novo rumo na vida, decidiu ser parteira como duas conterrâneas, Madame Pipar e Madame Berthou. O companheiro havia morrido e ela tinha dois filhos.
Maria Josefina teve o cuidado de se preparar e em 1834 se matriculou no curso de Partos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e tomou aulas particulares com médicos da Corte. Tornou-se uma das mais importantes parteiras do Rio de Janeiro, com uma clientela invejável. Atendia a todas as mulheres, sem distinção, em qualquer bairro da cidade. Madame Durocher “fazia também atendimento clínico e tratava de problemas ginecológicos, cuidava de doenças dos recém-nascidos, era convocada para perícia médico-legal, aconselhava na escolha de amas de leite”. Em 1871 recebeu convite para ingressar na Imperial Academia de Medicina que tinha entre seus objetivos dar parecer em Obstetrícia e foi a única parteira a ser sócia da entidade. Embora a ginecologia fosse restrita a médicos, ela justificava sua intromissão no ramo porque muitas mulheres se recusavam a ser tratadas por homens, mas para tanto estudou as moléstias uterinas. Médicos encaminhavam para ela pacientes recalcitrantes, o que comprova sua perícia.

Mme. Durocher. (Wikipedia)

Um fato curioso: quando começou a trabalhar, Madame Durocher passou a usar sobrecasaca, gravata borboleta e cartola, peças masculinas que lhe davam um aspecto bizarro, mas que ela considerava mais cômodas para o trabalho e mais decentes para uma parteira, mas era também uma questão de segurança porque na época apenas prostitutas saiam à noite sozinhas. “Não se sabia, à primeira vista, a que sexo pertencia essa personalidade original. Pelo aspecto físico e pelas vestes era um misto mal definido de homem e de mulher”, escreveu o médico Alfredo Nascimento.
Enfim, Maria Josefina Matilde Durocher, que naturalizada brasileira, fez a diferença na Corte, ajudando as mulheres de seu tempo e abrindo espaço em um mundo masculino por sua competência profissional.
  
**Maria Lúcia Mott: “Uma parteira diplomada”, in revista NOSSA HISTÓRIA, Editora Vera Cruz, RJ, julho de 2005.
*Nauk Maria de Jesus: “Os remédios cruéis da Colônia”, in revista NOSSA HISTÓRIA, Editora Vera Cruz, RJ, , julho de 2005.



quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

MEDICINA EM DUAS EXPOSIÇÕES


O professor Carlos da Silva Lacaz (1915-2002) foi o criador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com a ajuda da sociedade paulista, professores, médicos, pesquisadores e estudantes. Inaugurado em 1977, o museu tem o objetivo de preservar, pesquisar e divulgar os bens patrimoniais ligados à institucionalização da medicina e das práticas de saúde no Brasil e, em especial, São Paulo. Em 1993 ganhou o nome do seu criador, médico e pesquisador na área de microbiologia e micologia (ciência que estuda fungos) médica: Museu Carlos da Silva Lacaz ‒ FMUSP.
É bom lembrar que o próprio prédio da Faculdade de Medicina da USP faz parte da história da medicina e da cidade de São Paulo. Ele foi construído com recursos oriundos da Fundação Rockfeller e inaugurado em 1931. No museu, instalado no quarto andar, o visitante descobre aparelhos usados nos séculos XIX e XX, equipamentos médicos e cirúrgicos, peças de mobiliário e vestuário; há livros e documentos, fotos, esculturas, além de pinturas e gravuras. Merece destaque a bula do Papa Clemente VI, documento em pergaminho de 1345, doada à Faculdade pelo Sr. Antônio Bernardes de Oliveira em 1925. Há cerca de dez anos passou por um cuidadoso restauro, numa parceria entre o Museu e Núcleo de Conservação e Restauro Edson Mota (NUCLEM) da Escola SENAI Theobaldo De Nigris de Artes Gráficas, Celulose e Papel.
Graças ao museu é possível conhecer o trabalho do desenhista, pintor e ilustrador Augusto Esteves (1891-1966), que se destacou na área médica especialmente como ceroplasta. Explica-se: ele reproduzia em cera lesões causadas por doenças dermatológicas e ferimentos provocados por animais ou instrumentos de trabalho. Esse material, que era usado para fins científicos e didáticos, pode ser visto na exposição “A Pele Enferma: Augusto Esteves e seu museu de cera”. Augusto Esteves começou a trabalhar no Instituto Butantã em 1912 e dois anos depois fez as primeiras modelagens de lesões para a Faculdade de Medicina da USP. O trabalho de Augusto Esteves também é ressaltado no Museu Histórico da Associação Paulista de Medicina. 
Avenida Dr. Arnaldo, 455 - 4º andar. Cerqueira César. Estação Clínicas do Metrô.
 







A HISTÓRIA DA MEDICINA EM SÃO PAULO
“Arquivos Vivos e Memórias de Práticas Médicas em São Paulo.” Este é o título da exposição em cartaz no Arquivo Público do Estado de São Paulo em parceria com o Museu Histórico "Prof. Carlos da Silva Lacaz" da FMUSP. A mostra abrange o período entre 1988 e 1938.
        A institucionalização da medicina em São Paulo começa com a criação do Hospital de Isolamento em 1880 na estrada do Araçá, para onde os pacientes portadores de moléstias contagiosas eram encaminhados para evitar a disseminação das doenças. Em 1932 ele ganhou o nome de Hospital Emílio Ribas e a estrada é hoje a nossa conhecida Avenida Dr. Arnaldo.
        Consta que em 1884 o médico Bráulio Gomes (1854-1903) encontrou uma mulher dando à luz na rua, levou-a para casa onde ela recebeu toda assistência. Esse fato gerou a fundação da Associação Beneficente e Protetora das Mulheres Desamparadas (1894-1917), que deu origem à Maternidade São Paulo.
         Em 1885 começou a funcionar a Hospedaria dos Imigrantes (Museu da Imigração) onde o médico recém-formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho (1867-1920) trabalhou por um breve período. E se alguém por acaso se pergunta quem é esse Dr. Arnaldo, fique sabendo que foi o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP) em 1912 e a dirigiu até falecer repentinamente em 1920. Uma comissão formada pelos professores Ernesto Puech, Benedito Montenegro e Ernesto de Souza Campos visitou instituições de ensino médico e pesquisa em países da Europa e Estados Unidos em busca de subsídios para a elaboração do projeto arquitetônico. Os recursos vieram da Fundação Rockfeller ‒ 1 milhão de dólares transferidos pela agência norte-americana entre 1916 e 1931.
Após a criação da Faculdade de Medicina vieram o Manicômio Judiciário (1927) e o Pinel (1929). Enfim, a história é bem interessante e vale uma visita à exposição até dia 5 de fevereiro próximo para conhecer mais detalhes.

Arquivo Público do Estado de São Paulo: Avenida Voluntários da Pátria, 596, Santana. Estação Santana do Metrô. De segunda à sexta-feira das 9 às 17h. Gratuito.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

MUSEU DA HISTÓRIA DA MEDICINA

O museu pequeno, porém, muito bem organizado, pertence à Associação Paulista de Medicina e seu objetivo é resguardar a história e mostrar um pouco da evolução da medicina, além de dar apoio à pesquisa. Inaugurado em 2002, o acervo reúne documentos, livros raros, equipamentos cirúrgicos, louças, bustos, retratos entre muitas outras peças importantes e curiosas. O museu foi fundado pelo professor Jorge Michalany (1916-2012), formado pela Faculdade Paulista de Medicina em 1942. Além de fundador, Michalany foi curador do museu por 12 anos, tendo doado grande parte de seu acervo.
Podemos começar pelas gravuras que narram a trajetória do homem através dos séculos para aliviar os sofrimentos causados pelas doenças, muitas vezes enfrentando mais sofrimento ainda com os tratamentos. Muitos sucumbiram à terapêutica.
Localizo uma maleta preta que os médicos carregavam em tempos que visitavam seus pacientes em casa. Há uma variedade de seringas hipodérmicas de vidro com as caixas de metal em que eram acondicionadas; na coleção de estetoscópios se destaca o obstétrico usado entre 1840 e 1850. Outra vitrine exibe ventosas de vidro usadas para melhorar a circulação sanguínea em algumas partes do corpo. Sangria? Nada de sanguessugas (felizmente), mas estranhos aparelhos usados no final século XIX e início do século XX. Há também vários tipos de microscópios.
Passamos então para a área em que se encontram receituários e objetos de farmácia. Remédios antigos em embalagens originais como Cibalena, Coramina, Dramin, Nervosina e Sedol ‒ embora nunca tenha ouvido falar dos dois últimos imagino sua utilidade... Não faltam medicamentos homeopáticos como os glóbulos do Dr. Humphreys, laboratório que produzia compostos para diversas enfermidades.
Há também um espaço dedicado à história de São Paulo: o Memorial da Revolução Constitucionalista de 1932, com um acervo importante e variado. Entre os livros raros destaca-se o “Hippocratis prognostica commentaria”, de autoria de Ioanis Bravi, da universidade de Salamanca. A obra foi publicada em 1593.
Item curioso é a miniatura de um navio em uma garrafa de vidro. Nada demais caso o “artista” não fosse Michel Trad, autor do primeiro crime da mala cometido em São Paulo em 1908. Foi um presente de Trad, então preso na Cadeia Pública de São Paulo, ao seu médico Nagib Faris Michalany.


E como na vida nem tudo é dor, há também um belo piano, estilo Luis XVI, que recebeu medalha por participação na Exposição Universal de Paris e Londres de 1855. Doação: Jorge Michalany.


    
O belo piano doado por Jorge Michalany.

O acervo do Museu tem crescido graças a doações de médicos, hospitais, empresas entre outros.



Museu da Associação Paulista de Medicina. Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 278, 5º andar. Visitas: de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. Gratuito. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A MEDICINA DE ANTIGAMENTE


          A cidade de São Paulo tem vários museus temáticos pouco conhecidos, porém muito importantes. Exemplo? Há pelo menos quatro museus ligados à medicina ou saúde que merecem uma visita. Museu da Santa Casa de São Paulo (R. Dr. Cesário Mota Júnior, 112 - Vila Buarque), Museu do Hospital Santa Catarina (Avenida Paulista, 200, Bela Vista), Museu da Faculdade de Medina da USP (Av. Dr. Arnaldo, 455 - 4º andar, Cerqueira César) e Museu de História da Medicina da Associação Paulista de Medicina (Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 278, Bela Vista). 

Santa Casa de São Paulo. Foto: Wikipedia.
A Santa Casa de São Paulo foi fundada por volta de 1560, bem depois da Santa Casa de Santos, que foi a primeira do Brasil e data de 1536. Ela se localiza na Vila Buarque onde ocupa um prédio em estilo gótico, projetado pelo arquiteto Luis Pucci, inaugurado em 1884. O que pouca gente sabe é que o hospital tem um museu que, apesar de ter mais de 100 anos, só foi aberto ao público em 2001. Ele funciona no prédio da Provedoria aonde se chega atravessando um jardim cheio de sombra e tranquilidade. Fica à esquerda da Capela Nossa Senhora da Misericórdia, que já tem 110 anos e está totalmente restaurada.

Com o apoio de doadores e amigos, o Museu abriga um acervo com peças dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, mas três coisas merecem toda a atenção: a Roda dos Expostos, o eletroímã para retirar ciscos dos olhos e a maca que esteve em uso até o final dos anos quarenta do século passado. 

Rosa dos Expostos*.
     A Roda dos Expostos é mecanismo de madeira, que era colocado nos muros de hospitais ou conventos para que os recém-nascidos enjeitados pudessem ser deixados em segurança sem revelar a identidade da pessoa. A criança era colocada no interior do mecanismo, que era fechado ao ser rodado, levando a criança para o interior do prédio. A roda teria surgido na Itália, na Idade Média, quando o número de crianças abandonadas que morria preocupou uma entidade religiosa.
Em Portugal, estavam instaladas nos hospitais da Santa Casa. No Brasil, a primeira de que se tem notícia é a de Salvador (1726). A de São Paulo data de 1825 e, segundo os registros, recebeu 4.696 crianças que recebiam cuidados até terem condições de enfrentar a vida. Quem saboreia romances históricos, conhece o sistema.
O eletroímã foi inventado na França no século XIX. Enorme, assemelha-se mais a um instrumento de tortura do que qualquer outra coisa. Ele foi idealizado para retirar objetos metálicos dos olhos, mas tinha tanta força que podia remover também a retina! E a gente ainda reclama de alguns exames desagradáveis...
As macas usadas na Santa Casa antigamente eram de palhinha da índia e mogno. Um luxo! A que está em exposição encontra-se em perfeito estado. Vale a pena dar uma olhada na farmácia antiga, no lavatório do tempo em que não havia água encanada nem sistema de esgoto na cidade, além de belíssimas peças de arte.
A Santa Casa de São Paulo é uma instituição filantrópica e privada considerada um dos mais importantes Centros de Referência Hospitalar do Estado de São Paulo.
A entrada (9 às 16h30 de segunda à sexta-feira) é gratuita.

HOSPITAL SANTA CATARINA
Para chegar ao Museu do Hospital Santa Catarina o visitante atravessa um belo jardim de 3 925 m². Nesse espaço cheio de tranquilidade, existem 100 tipos de plantas: além de rosas e orquídeas, há hortênsias, gardênias, jasmins, antúrios e camélias entre cerca de 180 árvores – ciprestes, cerejeiras e pinheiros –, e palmeiras. Uma delicada escultura de São Francisco de Assis se destaca em meio ao verde e mais adiante há um insólito grupo de anõezinhos. Nos fundos, encontram-se uma gruta e um lago com carpas coloridas. Sabiás, periquitos, bem-te-vis, beija-flores, rolas, pardais e papagaios se encarregam de alegrar o ambiente com seus gorjeios e cantorias. Inaugurado em 6 de fevereiro de 1906, como Sanatório, o Hospital Santa Catarina foi criado por iniciativa da Irmã Beata Heinrich, do médico austríaco Walter Seng e de Dom Miguel Kruse. 
O museu ou Acervo Histórico Irmã Beata Heinrich compõe-se de fotos, mobiliário, objetos usados pelas equipes médicas e mesmo artigos pessoais. O visitante tem uma boa ideia da evolução da medicina, suspira aliviado por estar em uma época em que os avanços tecnológicos garantem aos pacientes tratamentos menos assustadores (arrepios ao ver a machadinha para amputações e as agulhas de tricô usadas em cirurgias vasculares). Ao admirar a coleção de peças de prata e de porcelana inglesa usadas no hospital até a década de 1930 percebe-se a elegância dos serviços oferecidos aos pacientes. Avenida Paulista, 200. Telefone para agendamento: 11-3016-4155.  Metrô Brigadeiro. (Continua.)
*Foto: Site do Museu da Santa Casa.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

HISTÓRIA E HISTÓRIAS DA MEDICINA


Ao arrumar estantes de livros sempre encontramos um velho amigo esquecido. Desta vez foi “A assustadora historia da Medicina”, do inglês Richard Gordon (1921-1917). Gordon foi cirurgião e anestesista, escreveu vários livros sobre medicina, mas foi quando resolveu contar casos médicos em linguagem popular que acabou ganhando fama internacional e suas obras se transformaram em filmes e séries de TV.
Pré-natal, de John Steen (c. 1626-1679). 
Neste livro, com uma boa dose de humor negro, ele torna o assustador divertido. E tem sinceridade suficiente para escrever sobre médicos aquilo que os pacientes pensam, porém não têm coragem de dizer aos próprios. Exemplo: “A história da medicina não é o testamento de idealistas à procura da saúde e da vida, assim como a história do homem não é mais gloriosa do que uma lista de irracionalidade brutal e egoísta com lampejos espasmódicos de sanidade.” E conclui: “A história da medicina é, em grande parte, a substituição da ignorância por mentiras”. Tudo nos dois primeiros parágrafos.
À medida que se prossegue a leitura descobre-se que no decorrer dos séculos os doentes não passaram (passam?) de cobaias. Os bons doutores usaram mais frequentemente do que se gostaria o método da tentativa e erro. Grandes descobertas frequentemente foram obra do acaso. Na França, galinhas estavam morrendo com cólera. “Pasteur viajou nos feriados e esqueceu no laboratório um espécime do fluído bacteriano que infectava as galinhas, e saiu para uns dias de descanso.” Na volta, notou que a cultura de bactérias em crescimento tinha enfraquecido “e concluiu que era ideal para inoculação contra a epidemia”. Caso parecido aconteceu com Alexander Fleming, que viajou num feriado e ao retornar descobriu o bolor da penicilina... Gordon não perdoa: “É muito inteligente ganhar o premio Novel in absentia”.
Richard Gordon dominava a arte de entreter o leitor. A narrativa é ligeira e os casos vão se sucedendo sem muita preocupação cronológica. A releitura foi um grande prazer.
O livro pode ser encontrado na Estante Virtual.

sábado, 25 de janeiro de 2020

POESIA CONCRETA

Pátio do Colégio, onde tudo começou há 466 anos. 

Em 1983 o jornalista Boris Casoy (na época na Folha de S. Paulo) pediu ao professor José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994) que escrevesse um artigo sobre São Paulo para ser publicado no dia 25 de janeiro, quando a cidade completaria 429 anos. Uma escolha justificada, já que Figueiredo Ferraz tinha sido prefeito de São Paulo no período de 1971-1973 e era um estudioso da metrópole. Ele escreveu, na verdade, uma bela crônica: “São Paulo: Passado, Presente, Futuro”. Começa pedindo desculpas ao jornalista por ter assumido um compromisso que não tinha capacidade de cumprir pela complexidade da metrópole paulistana, mas à medida que se justifica vai desenhando um retrato realista de São Paulo, apontando os problemas que afligem a população desde a sua origem. E conclui:
...
“Assim, meu amigo, sobre esta São Paulo tão complexa eu não tenho condição de escrever como, creio, não o têm os sociólogos e os economistas.
É tarefa para os poetas. Só eles, pela sensibilidade que lhe é peculiar, pelo seu poder de abstração, ainda podem ver o azul no negrume do nosso ar poluído, o verde no cinzento do concreto, a pureza cristalina no marrom das águas fétidas e conspurcadas que nos envolvem; ver o sorriso no choro de uma criança, a resignação numa lágrima que rola, ver energia nos corpos cansados e esperanças quando tudo é adverso.
Só eles podem realçar ou exaltar  e isto é o que importa  a nossa determinação inquebrantável de prosseguir, sem esmorecer, certos de um porvir sempre melhor, convencidos de que o crescimento econômico equilibrado e justo, não é incompatível com a paz social.
Só ele pois, os poetas, podem descrever esta São Paulo, exaltando as suas virtudes e as suas imensas potencialidades, sobretudo ao ensejo de uma data como esta.
Perdoe-me, caro amigo, a incompetência que revelei e o desaponto que lhe causei.”

Publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 25 de janeiro de 1983.
URBS NOSTRA, de J. C. de Figueiredo Ferraz, 1991.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

HOJE É DIA DE MANET










Edouard Manet nasceu em 23 de janeiro de 1832 em Paris, cidade em que faleceu em abril de 1883.  Queria ser pintor, mas a família abastada se opôs. Sua atração pelo mar levou-o a tentar a Escola Naval, onde não foi admitido e assim contentou-se em embarcar como marinheiro no navio-escola "Havre et Guadeloupe" em dezembro de 1848 ‒ viagem que o trouxe ao Brasil. Retornou à França em junho de 1849 e dessa vez para fazer o que sempre quis: pintar.
"O tocador de pífaro", de 1866. Museu d'Orsay, Paris.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

SÃO PAULO, 466.

OS MODERNOS EMBLEMÁTICOS

Circolo Italiano ou Edifício Itália, 1965. Avenida Ipiranga, 344. 

Edifício Ipiranga (antigo Hotel Hilton), 1971. Avenida Ipiranga, 165.


As curvas do Edifício COPAN (embrulhado para restauro), 1966. Avenida Ipiranga, 200.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

SÃO PAULO, 466.

Uma das ruas mais antigas da cidade é a de São Bento, aberta poucos anos depois da fundação de São Paulo, segundo a Prefeitura. Chamava-se Rua Martim Afonso Tibiriçá, nome que depois de batizá-lo os portugueses deram ao Cacique cuja aldeia ficava no que hoje é o Largo de São Bento. Em 1887 a Câmara mudou para Coronel Moreira César, o que não agradou a população e dois anos depois os ilustres vereadores renomearam para Rua de São Bento, como era mais conhecida. Caminhar pela São Bento revela-se um passeio repleto de descobertas interessantes. Segue uma seleção de algumas construções mais antigas da rua. Fonte: dissertação de mestrado da arquiteta Regina Helena Vieira Santos (FAU/USP).


O sobrado do cafeicultor, empresário e político Elias Pacheco Chaves é de 1881. A fachada foi refeita em 1885 em estilo neoclássico. Em 1899, quando a família mudou para os Campos Elíseos, o sobrado passou a ser sede da Prado Chaves & Cia. Ltda. São Bento, 189/197. (Fonte: CONDEPHAAT.) 


A rua começa na Praça Ouvidor Pacheco e Silva e logo naquela esquina (nº 16) o Brigadeiro Luiz Antônio de Souza Queirós (1746-1818) teve sua residência. O prédio atual de dois andares em estilo eclético foi um projeto do arquiteto alemão Maximilian Hehl (1861-1916) e data de 1908. 

Prédio de 1908. Arquiteto alemão August Fried. Fotos: janeiro, 2020.

Os dois sobrados também são de 1908. Fotos: janeiro, 2020.


O Cine São Bento foi inaugurado em 10 de setembro de 1927, fechou por alguns anos, reabriu e encerrou atividades definitivamente em 1950. O prédio em estilo eclético simples tem apenas um pavimento e atualmente bastante descaracterizado abriga três lojas comerciais. Rua São Bento, 241.
Década de 1930. Estilo eclético. Rua São Bento, 201. 

domingo, 19 de janeiro de 2020

ÚLTIMO DOMINGO DE 2019

Um domingo em São Paulo pode ser bem tranquilo para alguns ou de trabalho para outros. Eu aproveitei o sol de verão para caminhar pelo centro, onde encontrei este senhor que desfrutava da manhã sossegada para desenhar o Edifício Frei Santana Galvão, do outro lado da Praça Ouvidor Pacheco e Silva, ao lado do Convento de São Francisco. Enquanto isso a gari varria a calçada, sem pressa, sem a multidão costumeira passando com o alvoroço de sempre. Como Diva, a guarda municipal de plantão que puxou conversa quando me viu fotografando na esquina da Rua do Ouvidor. Uma conversa sempre ajuda já que nada acontecia (felizmente) e o tempo parecia não passar para ela. 
29 de dezembro de 2019.


sábado, 18 de janeiro de 2020

SOBRE SAMPAIO E SALDANHA


No princípio, chamava-se Rua Nova de São José, mas segundo cronistas da época estava longe de ser um lugar santo: “era um só prostíbulo varejado pela linha de bondes que a atravessava de ponta a ponta”*. Em 1912 uma parte do casario modesto desapareceu com a remodelação urbana em curso na região e logo prédios elegantes começaram a brotar em sua extensão.


Foi lá que se ergueu o primeiro arranha-céu de São Paulo com doze pavimentos e 50 metros de altura, projeto dos arquitetos Samuel Augusto das Neves (1863-1937) e Christiano Stockler das Neves (1889-1982) para o comerciante José de Sampaio Moreira (1866-1943). O título de prédio mais alto da cidade durou até a conclusão do Edifício Martinelli em 1929. Quando edifício de Sampaio Moreira ficou pronto em 1924, a Casa Godinho, mercearia do português José Maria Godinho que funcionava na Praça da Sé desde 1888, instalou-se na loja, onde se encontra até hoje. Nada mal: duas instituições paulistanas no mesmo endereço ‒ Líbero Badaró, 346. Em estilo eclético, o Sampaio Moreira esteve fechado por alguns anos, passou por um restauro cuidadoso e atualmente é sede da Secretaria Municipal de Cultura.
Enquanto se espera um dos quatro elevadores, há muito que ver: a porta de entrada de ferro trabalhado, o teto ornamentado e as escadarias de mármore branco. O acesso ao terraço é pelas escadas, passando pela sala de máquinas onde ficam os três motores suecos que desde 1924 movimentam os elevadores. Do terraço, tem-se uma bela vista de São Paulo, do Vale do Anhangabaú com o Theatro Municipal dominando o cenário. Melhor: pode-se admirar de perto a beleza da colunata que se vislumbra da rua e arremata o edifício.
O prédio é tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo (CONPRESP) e a Casa Godinho foi reconhecida pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (CONPRESP) como patrimônio cultural imaterial da cidade.

A história do o Edifício Saldanha Marinho (Rua Líbero Badaró, 39) está vinculada de certa forma ao desenvolvimento dos transportes na cidade. Nas primeiras décadas do século, o trem tinha papel relevante na economia do país e os automóveis ainda eram um artigo de luxo. No final da década de 1920, o Automóvel Club de São Paulo promoveu um concurso para a nova sede e o projeto vencedor foi de Elizário da Cunha Bahiana e Christiano Stockler das Neves (autor da estrutura); entretanto, antes do término da obra, o prédio foi vendido para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) e o arquiteto Dácio Aguiar de Moraes (1875-1958) assumiu a construção e fez algumas alterações no projeto original. O Saldanha Marinho, erguido entre 1929 e 1933, inclui-se entre os primeiros edifícios em estilo art déco na cidade, tem onze andares, dois elevadores, vitrais da Casa Conrado (o mais importante ateliê de vitrais do país);pisos das escadas e do saguão em mármore. O nome do prédio é homenagem ao pernambucano Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895), que foi presidente (governador) das Províncias de Minas e de São Paulo e teve papel decisivo na fundação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. O prédio foi tombado em 1986. Atualmente, é sede da Secretaria de Segurança Pública.

        CURIOSIDADE: O escritor Oswald de Andrade manteve entre 1917 e 1918 uma garçonnière na sala dois, terceiro andar do prédio 67 da Rua Líbero Badaró, que servia também para os saraus literários frequentados por Monteiro Lobato, Menotti del Picchia e Guilhermee de Almeida entre outros amigos. Era o “covil da Rua Líbero”, como o próprio Oswald referia-se ao apartamento. A amante desse período era “Miss Ciclone”, uma normalista. 


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

AH! ESSES FRANCESES...




A bela casa ao lado do antigo Banco Alemão, na Rua XV de Novembro, foi endereço de um dos mais importantes livreiros de São Paulo no século XIX, Monsieur Anatole Louis Garraux (1833-1904). Originalmente, o imóvel tinha dois pavimentos e, em 1896, o novo proprietário Alexandre Thiollier (1854-1913), antigo funcionário da livraria, solicitou a construção do terceiro pavimento. Desde aquela época o prédio, conhecido como Casa Garraux, sofreu várias modificações e mesmo o que restou do original é muito bonito.
Garraux desembarcou no Rio de Janeiro em 1850. Tinha 17 anos. Ele trabalhou na Livraria Garnier, mas em 1858 mudou para São Paulo e logo abriu a Livraria Acadêmica na Rua do Rosário, especializada na área jurídica e só três anos depois, em sociedade com outro francês, inaugurou a Casa Garraux. Aos poucos ele diversificou os negócios, oferecendo produtos franceses de luxo ‒ as “tentações” da Casa Garraux foram citadas até pela Princesa Isabel em suas memórias. O espaço da livraria diminuiu, mas ainda mantinha um catálogo de boa qualidade. Quando se aposentou, ele era muito rico e transferiu a casa a Alexandre Thiollier, que trabalhara com ele por mais de vinte anos e trilhou o mesmo caminho do sucesso do conterrâneo.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

HISTÓRIA, ARQUITETURA E SAPATOS.


Nesse mundo apressado, em que se corre entre a casa e o trabalho, ligado no celular, ouvindo música ou procurando mensagens, provavelmente, as pessoas entrem na sapataria, escolham, experimentem, comprem os sapatos e saiam sem perceber a beleza do prédio nem se importar com sua história.
Edifício Guinle e ao fundo o Triângulo.
        Em 1912, o empresário Guilherme Guinle (1882-1960) resolveu instalar em São Paulo a sede da Guinle & Cia e iniciou os procedimentos legais para a construção de um prédio de concreto armado de sete andares na Rua Direita, então uma das principais da cidade. Guinle junto com Cândido Gaffrée inclui-se entre os maiores empresários brasileiros e atuou em várias frentes ‒ foi o construtor dos portos de Santos e do Rio de Janeiro, construiu hidrelétricas que forneceram energia para cidades de Santos, Salvador e Petrópolis entre outras, financiou pesquisas que lhe permitiram a abertura e exploração do primeiro poço de petróleo nacional em Lobato (BA) entre muitas outras atividades.
A construção do prédio em São Paulo gerou discussões técnicas por sua ousadia e foi necessário mesmo o aval da Escola Politécnica, pois na época o edifício mais alto da cidade tinha quatro andares. O projeto foi de Hyppolito Gustavo Pujol Júnior e a construção estendeu-se até 1916. A Casa Guinle em estilo art nouveau mantém-se bem preservada (atualmente está pichada como quase todo patrimônio da cidade no Centro Histórico) e vale a pena parar para observar sua beleza. E fazer compras porque em 1997 o imóvel foi adquirido por Ricardo Kachvartanian, que dirige a MUNDIAL CALÇADOS, uma rede de lojas que atua no mercado desde 1979. A loja de calçados fica no térreo.
A Casa Guinle é tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo.
O SENHOR DA ESQUINA
Casa das Arcadas, novembro de 2012. 
Continue caminhando pela Rua Direita até a Rua Quintino Bocaiuva e vire à esquerda. Mais à frente encontra-se a Casa das Arcadas.  O lugar é privilegiado. Serve perfeitamente de palco para a beleza do prédio: Rua Quintino Bocaiuva esquina com Benjamin Constant. Impossível ficar indiferente a esse prédio de sete andares e porão, em estilo eclético com influência neoclássica, inaugurado no final da década de 1920. O edifício pertenceu a Armando Álvares Penteado (1884-1947). Cafeicultor e empresário paulista, ele morreu sem descendentes e parte de sua fortuna destinou-se à criação da Fundação Armando Álvares Penteado, que é a proprietária do imóvel. A cúpula adornada com colunas decorativas fica bem visível da esquina.
       O nome do edifício tanto é uma referência às arcadas características do prédio quanto uma alusão ao fato de que boa parte dos escritórios fosse de advogados e muitos deles provenientes da Faculdade de Direito, conhecida também como Arcadas.
Tão relevante quanto o prédio é A FIDALGA, a loja de calçados que lá se instalou em fevereiro de 1928, quando foi fundada pelo Sr. José Hernandes. Com o falecimento do proprietário décadas depois, o filho dirigiu os negócios por 35 anos e agora a loja está sob o controle da filha. Nesses 92 anos, a família sempre se preocupou em manter o atendimento de alto padrão e, como ressalta seu site, “a matéria prima, qualidade e variedade continuam sendo o ponto alto de A Fidalga”.



terça-feira, 14 de janeiro de 2020

SÃO PAULO E OSWALD DE ANDRADE (3)

Jardim da Luz, 2009.

jardim da Luz

Engaiolaram o resto dos macacos
Do Brasil
Os repuxos desfalecem como velhos
Nos lagos
Almofadinhas e soldados
Gerações cor-de-rosa
Pássaros que ninguém vê nas árvores
Instantâneos e cervejas geladas
famílias

Oswald de Andrade
(Postes da Light)





Rua Quinze, 11 de janeiro de 2020. 


(...)
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a rua Quinze
E o progresso de São Paulo.


Oswald de Andrade
(Lóide brasileiro)


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

SÃO PAULO E OSWALD DE ANDRADE (2)

Praça Antônio Prado.


aperitivo


A felicidade anda a pé
Na praça Antônio Prado
são 10 horas azuis
O café vai solto como manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos. 

Oswald de Andrade



Barricada
            A Sergio Milliet


Todos os passarinhos da Praça da República
Voaram
Todas as estudantes
Morreram de susto
Nos uniformes de azul e branco
As telefonistas tiveram uma síncope de fios
Só as árvores não desertam
Quando a noite luz.
Oswald de Andrade
Praça da República, 2019.


domingo, 12 de janeiro de 2020

SÃO PAULO E OSWALD DE ANDRADE

Balada do Esplanada
A Gofredo 

Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes d' ir
Pro meu hotel

É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu qu'ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel

No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel

Pra m'inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador
                               Oferta
Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador 
Até aqui
O teu amor
até aqui

Oswald de Andrade

"Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade". São Paulo: Editora Globo, Secretaria de Estada da Cultura, 1991.

Foto:novembro de 2019. Antigo Hotel Esplanada, sede da atual Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento. Praça Ramos de Azevedo, 254. Foto: Hilda Araújo.