Cerbère
está situada nos Pirineus Orientais (França), na fronteira com a Espanha, em uma região cuja ocupação se
perde no tempo. Há ruínas pré-históricas e, naturalmente, os romanos estiveram
por lá. Aliás, o nome da cidade está relacionado à mitologia greco-romana,
segundo a qual o cão Cérbero é o guardião do Hades (inferno). Mas existe muita
discussão sobre o assunto e outras explicações, mas gosto desta porque me
parece bem óbvia.
A
cidade fica em uma pequena baia no Mediterrâneo e, além da paisagem marítima, o que se destaca
são os arcos da ferrovia, construída em 1880 (Eiffel). A rodovia corta a
cidade, desce o morro por uma plataforma que cobre o cais e a marina. Duvido
que alguém chegue de trem à cidade e desça a pé até a Avenida General De Gaulle
sem que a população toda saiba.
A
economia baseia-se na vinicultura e no turismo – pesca, mergulho submarino e
praias. Cerbère tem 1.560 habitantes* que, tradicionalmente, fazem a sesta. A
vida retoma seu curso depois das 16h30. Da varanda do hotel ouço os sinos da
igreja (que fica na encosta do morro) que chamam para alguma cerimônia; vejo o
pai com o filho aproveitando o fim de tarde na praia, onde um pequeno grupo
pratica mergulho. Aparecem algumas pessoas na praça onde se destacam
hotel, restaurante, loja de lembranças...
Em
um canto da praça há um grupo de esculturas em homenagem aos produtores rurais,
que por longo tempo tiveram de fazer à mão o transbordo dos produtos agrícolas
(especialmente laranjas) comercializados entre Espanha e França. O motivo: a
diferença de bitola das duas ferrovias, que impedia a circulação de trens entre
os dois países.
Há
dois monumentos em homenagem aos cinco ferroviários fuzilados pelos nazistas
durante a II Guerra Mundial (1939-1945). As lembranças do conflito estão presentes
na cidade – Avenue du General De Gaulle, Rue 18 de Juin
1940 (data em que o general De Gaulle deu início à Resistência) etc.
Na
verdade, lembrei-me dessa viagem, ao ler um ensaio de Walter Benjamin sobre os
livros e seus colecionadores.
Crítico,
ensaísta e filósofo Walter Benjamin (1892-1940) teve uma vida atribulada. Judeu
alemão, filho de comerciantes, com a ascensão do nazismo, seu trabalho deixou
de ser publicado na Alemanha e em 1935 refugiou-se na França. Em 1939 havia
perdido a cidadania alemã e estava praticamente na miséria. Com a deflagração
da guerra e a posterior ocupação da França pelos alemães em 1940, Benjamin decidiu
fugir com um grupo de amigos para Portugal, via Espanha, para se estabelecer
nos Estados Unidos.
As dificuldades dessa viagem até Cerères deterioraram ainda mais seu estado de saúde e de espírito de Benjamin. Na última parte da jornada, ele mal aguentou subir os Pirineus e quando jornada clandestina terminou no posto de fronteira da Espanha – Cerbère-Portbou, todos foram barrados porque era essencial o visto francês de saída. Sem cidadania alemã e sem documentação francesa, a situação do escritor era dramática. Os fugitivos conseguiram permissão para ficar aquela noite na aldeia próxima. Benjamin, entretanto, sentiu-se encurralado – não podia sair da França nem voltar – e decidiu que o único caminho era a morte e para isso usou morfina. Foi uma agonia lenta. Horas depois de sua morte, o grupo fugitivo conseguiu autorização para prosseguir viagem. Antes, porém, eles cuidaram dos despojos do companheiro de jornada e pagaram o funeral no cemitério de Portbou (Espanha).
Walter
Benjamin nasceu em 15 de julho de 1892 em Berlim e morreu em 26 de setembro de 1940 em Cerbère.
*Pelo censo de 2018, 1.351 habitantes.
Crônica de 2006, ano em que cheguei à França procedente da Espanha. .
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