A Fúria (Rapl, 2016). As histórias se
desenvolvem em torno de um detetive (Kuneš) que, como punição por seu
temperamento explosivo, foi designado para uma região remota no interior da
República Tcheca, onde a violência é preocupante. O time enfrenta bandidos e
seus próprios problemas pessoais. Uma ótima oportunidade para conhecer um pouco
da área rural desse país e suas paisagens bucólicas. A primeira temporada teve
treze episódios com duração de sessenta minutos cada. Os protagonistas são Hynek
Cermák, Lukás Príkazský, Alexej Pysko. A série recebeu uma indicação para o
prêmio Leão Tcheco (os filmes de maior prestígio e prêmios de TV da República
Tcheca) e um no Prix Europa de melhor série de ficção para TV.
domingo, 3 de julho de 2022
TV NAS FÉRIAS
sábado, 2 de julho de 2022
OS MISTÉRIOS DE PRAGA
Para quem se cansou das séries policiais americanas para televisão, com heróis repetitivos e discursos batidos, há muitas novidades à disposição. Descobri por acaso, e gostei muito, das produções da República Tcheca, disponíveis no Eurochannel e no Amazon Prime. Meu único problema é guardar o nome dos atores e dos personagens, em que sobram consoantes e faltam vogais, o que também aprecio bastante porque é novidade para ouvidos acostumados com idiomas ocidentais. As narrativas são construídas de forma diferente do padrão americano assim como as cenas de sexo não acontecem exatamente sob os lençóis.
Selecionei quatro séries para os próximos dias, pois afinal esta é uma ótima oportunidade para conhecermos um pouco mais sobre os países do Leste da Europa cujos povos viveram sempre momentos de turbulência. Uma das séries tchecas, por exemplo, tem como cenário Brno. A primeira vez que ouvi falar de Brno foi em um romance de John Le Carré cujo enredo se desenrola na época da Guerra Fria, quando o país ainda se chamava Tchecoslováquia, denominação que recebeu após a II Guerra Mundial (1939-1945), pois antes fizera parte do Império Austro-Húngaro, desfeito após o conflito quando ficou no âmbito da União Soviética até dezembro de 1991. Em 1993, houve a divisão pacífica do país em duas repúblicas: a Tcheca (Chéquia para os portugueses) e a Eslovaca. Enfim, é apenas uma síntese rápida dos eventos recentes.
A República Tcheca tem pouco mais de dez
milhões de habitantes e um alto nível de desenvolvimento humano (HID). A
capital é Praga, cidade com um belíssimo patrimônio urbano e cultural; a
população: pouco mais de um milhão e meio de habitantes. A Universidade de Carlos
remonta ao século XIV e a Universidade Técnica foi fundada no século XVIII. O
compositor Antonín Dvořák e os escritores Franz Kafka e Rainer Maria Rilke nasceram
em Praga.
Quando comecei a assistir à série
Mistérios de Praga (Zlociny
Velké Prahy, 2020), fiquei um pouco frustrada porque pouco se vê da
cidade, o que é compreensível por se tratar de uma história situada nos anos de
1920. O personagem principal é o inspetor Budik (Jaroslav Plesl), casado com
uma aristocrata que perdeu o título com o fim da monarquia, ganha uma promoção,
entretanto, não para o cargo em Praga, mas para o subúrbio. É assim que um dândi
vai conhecer o lado humilde da cidade. Ele tem dois ajudantes: o inspetor Havlik
(Jirí Langmajer) e o novato Martin Novacek (Denis Safarík), que parece, mas não
é nada tolo. A primeira temporada tem dez episódios com uma hora de duração.
quinta-feira, 30 de junho de 2022
Embora cansada
do Facebook, reconheço que ele funciona bem para encontrar pessoas, avivar
lembranças, recuperar momentos e experiências que a vida vai colocando nos
escaninhos da memória. Caso do Ateneu Progresso Brasileiro, que formou muitas gerações
de jovens de Santos. Nunca quis ser professora, mas a convite insistente de uma
amiga que lecionava lá, acabei aceitando e por um semestre dei aula para uma
classe do segundo ano primário (hoje ensino fundamental). Foi uma daquelas
experiências ruins, porque algo de que não gostei de fazer, e ao mesmo tempo
importante pois tive certeza de que jamais voltaria para uma sala de aula a não
ser como aluna. Na época, fazia o Clássico no Canadá. De bom mesmo só o carinho
dos alunos no dia dos professores e no final do ano. Guardei dois nomes apenas:
Guilherme Navarro, que soube que se formou em Medicina, e Pedro, que me deu uma
lembrança com um cartão que guardo até hoje. Graças à formação do grupo de ex-alunos na rede social lembrei da
diretora Dilza Oliveira Zylberman, uma senhora que falava baixinho, era tão
magrinha que parecia planar ao sabor de brisas. Faltou a foto de Jandira, creio
que vice-diretora ou secretária da Instituição. O Ateneu funcionava num casarão
da avenida Ana Costa que foi demolido na década de 1970 para a abertura de uma
via de acesso à rua Bahia, no Gonzaga: rua Cláudio Doneux de Moura. No ano
seguinte, fui convidada a continuar, agradeci e me despedi para sempre do
ensino. Na lista de ex-alunos, vi vários amigos e conhecidos.
terça-feira, 28 de junho de 2022
TERÇA COM POEMA
IDADE MADURA
(Excerto)
Carlos Drummond de Andrade
As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras nem delas careço.
Tenho todos os elementos
ao alcance do braço.
Todas as frutas
e consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta
do que me completa e é quase sempre melancólico.
[...]
Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua maré de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos
não via.
Eles dizem o caminho,
embora também se acovardem
em face de tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto do homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um
número de casa,
e ganho.
terça-feira, 21 de junho de 2022
A CARAVANA MODERNISTA
O
diplomata Graça Aranha (1868-1931) aposentou-se e retornou ao Brasil em busca
de novas atividades, conheceu os jovens modernistas em São Paulo, apaixonaram-se
e começaram a pensar em como tornar o Brasil independente das escolas
literárias europeias, elas mesmas na vanguarda. Graça Aranha conhecia a pessoa
certa para essa missão: o paulista Paulo Prado (1869-1943) – milionário,
empresário, escritor, mecenas e moderno. Desses encontros concretizou-se a
semana de Arte Moderna de 1922 que abalou o conservadorismo paulistano no seu
templo: o Theatro Municipal. O tempo passou e o grupo achou que era preciso ir
mais longe. Que tal a capital da República? Como? Nada melhor que o ninho dos escritores
brasileiros: a Academia Brasileira de Letras, situada no Centro do Rio de Janeiro.
Mais
uma vez os modernistas contaram com o apoio precioso de Graça Aranha, que era
acadêmico (cadeira 38). Foi assim que no dia 19 de junho de 1924 desembarcaram
no Rio de Janeiro cinco escritores modernistas para prestigiar uma conferência de
Graça Aranha, na Academia de Brasileira de Letras que, sem dúvida, ficaria na
história. Do trem procedente da Pauliceia Desvairada desceram o próprio Mário
de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Candido Motta Filho e
Cassiano Ricardo. O grupo foi recepcionado na estação D. Pedro II pelos
modernistas, que apoiaram a Semana de Arte Moderna, e em 1924 estavam estabelecidos
no Distrito Federal. Lá estavam: Alceu Amoroso
Lima, Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira, Murillo Araújo, Paulo
Silveira, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Prudente de Moraes Neto e Sérgio
Buarque de Hollanda.
“O Espírito Modernista” era o tema da conferência de Graça Aranha e mais da metade dos acadêmicos estava
presente à sessão. O fato de ser acadêmico (fundador) não o impediu de declarar
guerra à instituição. E embora um diplomata, não usou de meias palavras. “A
fundação da academia foi um equívoco e foi um erro.” Considerou ainda que
quarenta imortais era “consagração exagerada para tão pequena literatura” e não
deixou por menos. “Se a Academia não se renova, morra a Academia”. Nem é
preciso dizer que se instalou um tumulto na plateia: os modernistas carregando
Graça Aranha em triunfo e enquanto os acadêmicos dando vivas à ABL erguiam nos
ombros Coelho Netto, um dos alvos prediletos da jovem guarda dos anos de 1920. Ruy
Castro em seu livro (ótimo) “Metrópole à beira-mar” conta que o próprio Coelho
Netto já fizera sua autocritica em uma entrevista dez anos antes: “Passei a
minha vida literária absorvido pela abundância, pelo delírio do adjetivo”. E continuou:
“Preocupei-me mais com a roupagem do manequim e esqueci-me da anatomia do ser”.
Concluindo que: “Obumbrei-me do adjetivo e esqueci-me do substantivo!” Os
modernistas não se impressionavam facilmente e pregavam a necessidade de “descoelhonetizar”
o Brasil. Chegou-se a dizer que Coelho Neto era “a negação mais completa da
literatura no Brasil”. (Obumbrava-se?)
O tom irreverente da conferência daquele
dia não foi uma novidade na história da Academia que o crítico literário Agrippino
Grieco (1888-1973) chamou de “morgue literária”, aconselhou o aproveitamento
dos fardões dos acadêmicos falecidos
como pano de mesa de bilhar e ainda ameaçou suspender a doação para os
presídios de livros recebidos de certos acadêmicos: “Era como punir os presos
duas vezes”. Muito maldosamente o jornalista Paulo Silveira, que chamava a ABL
de Epidemia Brasileira de Letras, dizia que o poeta Gonçalves Dias “para a
felicidade geral da nação, não sabia nadar”. Gonçalves Dias morreu no naufrágio do navio
Uma história que foi notícia em todo o país. A Academia Brasileira de Letras sobrevive a todo tipo de críticas há 124 anos. Graça Aranha é considerado pré-modernista: seu livro de estreia foi Canaã (1902), um sucesso editorial na época. Graça Aranha foi convidado para fazer parte da ABL por falta de nomes para completar o quadro de 40 membros para a fundação da entidade. O maranhense nasceu em 21 de junho de 1868 em São Luís (MA).
“Metrópole
à beira-mar – O Rio Moderno dos Anos 20”, Ruy Castro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
PS: Obumbrar: deixar pouco inteligível. Ter a mente anuviada. (Dicionário Michaelis.)
quarta-feira, 15 de junho de 2022
FRIO, BANHO E TOSA.
No caminho para o almoço, vi o
rapaz atravessando a rua com o amigo dele, um cachorro de porte médio muito
bonito. Quase em frente à faixa de segurança há um salão que oferece banho e
tosa, além de veterinário. A casa tem um pequeno recuo para estacionamento de
dois carros. O rapaz foi para a entrada, mas o cachorro parou na calçada. O
rapaz incentivou, puxou e o amigo dele simplesmente fincou as patas no chão e
se recusou a entrar. Enfim, foi de colo. Banho e tosa no frio... Só para os
mais fortes.
domingo, 12 de junho de 2022
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
Cântico dos Cânticos
Ela
Sua boca me cubra de
beijos!
São mais suaves que o vinho
tuas carícias,
e mais aromáticos que teus
perfumes
é teu nome, mais que
perfume derramado;
por isso as jovens de ti se
enamoram.
Leva-me contigo! Corramos!
O rei introduziu-me em seus
aposentos.
Coro
Queremos contigo exultar de gozo e alegria,
celebrando tuas carícias, superiores ao vinho.
Com razão as jovens de ti se enamoram.
Canção da amada
Ela
Sou morena, porém graciosa,
ó filhas de Jerusalém,
como as tendas de Cedar,
como os pavilhões de Salomão.
Não me olheis com desdém, por eu ser morena!
Foi o sol que me bronzeou:
os filhos de minha mãe, aborrecidos comigo,
puseram-me a guardar as vinhas;
a minha própria vinha não pude guardar.
Ambição do amor
Ela
Indica-me, amor de minha alma: onde pastoreias?
Onde fazes repousar teu rebanho ao meio-dia?
Para eu não parecer uma mulher perdida,
seguindo os rebanhos de teus companheiros.
Coro
Se não o sabes, ó mais bela das mulheres,
segue os rastos das ovelhas
e leva teus cabritos a pastar
perto do acampamento dos pastores!
Ele
Às parelhas das carruagens do Faraó
eu te comparo, minha amada.
Graciosas são tuas faces entre os brincos,
e teu pescoço entre colares.
Faremos para ti brincos de ouro
com filigranas de prata.
Exaltação do amor
Ela
Enquanto o rei está em seu divã,
meu nardo exala seu perfume.
O meu amado é para mim
como bolsa de mirra sobre meus seios;
o meu amado é para mim
como um cacho florido de alfena dos vinhedos de Engadi.
Ele
Como és formosa, minha amada!
Como és formosa, com teus olhos de pomba!
Ela
E tu, meu amado, como és belo,
como és encantador!
O verde gramado nos sirva de leito!
Cedros serão as vigas de nossa casa,
e ciprestes, as paredes.
Galanteios
Ela
Eu sou o narciso de Saron,
o lírio dos vales.
Ele
Sim, como o lírio entre espinhos
é, entre as jovens, a minha amada.
Ela
Como a macieira entre árvores silvestres
é, entre os jovens, o meu amado.
À sua sombra eu quisera sentar-me,
pois seu fruto é saboroso ao meu paladar.
Amor apaixonado
Ela
Ele me conduziu à casa do banquete,
onde a bandeira era para mim sinal de amor.
Restaurai-me as forças com tortas de uva,
revigorai-me com maçãs,
porque desfaleço de amor!
Sua esquerda apoia minha cabeça,
e sua direita me abraça.
Ele
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou corças do campo,
que não acordeis nem desperteis a amada,
antes que ela queira!
SEGUNDO CANTO
Primavera de amor
Ela
Atenção! É o meu amado:
eis que ele vem saltando pelos montes,
transpondo as colinas.
O meu amado parece uma gazela,
uma cria de gamo,
parado atrás de nossa parede,
espiando pelas janelas,
espreitando através das grades.
Adiantando-se, o meu amado me fala:
Ele
Levanta-te, minha amiga,
minha formosa, e vem!
Eis que o inverno já passou,
cessaram as chuvas e se foram.
No campo aparecem as flores,
chegou o tempo da poda,
a rolinha já faz ouvir
seu arrulho em nossa região.
Da figueira brotam os primeiros figos,
exalam perfume as videiras em flor.
Levanta-te, minha amiga,
minha formosa, e vem!
Pomba minha, nas fendas da rocha,
no esconderijo escarpado,
mostra-me teu semblante, deixa-me ouvir tua voz!
Porque tua voz é doce, gracioso o teu semblante.
Coro
Agarrai para nós as raposas, estas pequenas raposas,
que devastam as vinhas, nossas vinhas em flor!
Apelo da amada
Ela
O meu amado é todo meu, e eu sou dEle
Ele é um pastor entre lírios.
Antes que expire o dia e cresçam as sombras,
volta, meu amado,
– imitando a gazela ou sua cria –,
para os montes escarpados!
Divagações
Ela
Em meu leito, durante a noite,
busquei o amor de minha alma:
procurei, mas não o encontrei.
Hei de levantar-me e percorrer a cidade,
as ruas e praças,
procurando o amor de minha alma:
Procurei, mas não o encontrei.
Encontraram-me os guardas que faziam a ronda pela cidade.
Vistes o amor de minha alma?
Apenas passara por eles,
encontrei o amor de minha alma:
agarrei-me a ele e não o soltarei
até trazê-lo à casa de minha mãe,
à alcova daquela que me concebeu.
Ele
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou corças do campo,
que não acordeis nem desperteis a amada,
antes que ela queira!
TERCEIRO CANTO
Cortejo nupcial
Coro
O que vem a ser aquilo que sobe do deserto,
como coluna de fumo,
exalando mirra e incenso
e todos os perfumes dos mercadores?
É a liteira de Salomão,
escoltada por sessenta guerreiros
dos mais valentes de Israel.
Todos são espadeiros treinados para o combate;
cada qual leva ao flanco a espada,
por temor de surpresas noturnas.
O rei Salomão mandou construir um palanquim
de madeira do Líbano:
fez colunas de prata,
espaldar de ouro e assento de púrpura;
o interior foi carinhosamente adornado
pelas filhas de Jerusalém.
Vinde, filhas de Sião, contemplar
o rei Salomão com a coroa,
com a qual sua mãe o coroou
no dia de suas bodas,
dia de júbilo para seu coração!
Descrição da amada
Ele
Como és formosa, minha amada!
como és formosa,
com teus olhos de pomba,
na transparência do véu!
Teus cabelos são como um rebanho de cabras,
esparramando-se pelas encostas do monte Galaad.
Teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas,
recém-saídas do lavadouro:
cada um com seu par, sem perda alguma.
Teus lábios são fitas de púrpura,
de fala maviosa.
Tuas faces são metades de romã,
na transparência do véu.
Teu pescoço é como a torre de Davi,
construída com parapeitos,
da qual pendem mil escudos
e armaduras de todos os heróis.
Teus seios são como duas crias,
gêmeos de gazela, pastando entre lírios.
Ela
Antes que expire o dia e cresçam as sombras,
irei ao monte da mirra e à colina do incenso.
Ele
És toda formosa, minha amada,
e em ti não se encontra defeito algum.
Apelo do amado
Ele
Vem comigo do Líbano, minha noiva!
vem comigo do Líbano!
Desce do cume do Amaná,
dos cimos do Sanir e do Hermon,
das cavernas dos leões,
das montanhas das panteras!
Encantamento
Ele
Arrebataste-me o coração, minha irmã e minha noiva,
arrebataste-me o coração com um só de teus olhares,
com uma só jóia de teu colar.
Como são ternos teus carinhos,
minha irmã e minha noiva!
Tuas carícias são mais deliciosas que o vinho;
teus perfumes, mais aromáticos
que todos os bálsamos.
Teus lábios, minha noiva, destilam néctar;
em tua língua há mel e leite.
Tuas vestes têm a fragrância do Líbano.
Recanto de amor
Ele
És um jardim fechado, minha irmã e minha noiva,
uma nascente fechada, uma fonte selada.
Tuas plantas são um vergel de romãzeiras,
vegetação toda selecionada:
umbelas de alfena e flores de nardo,
nardo e açafrão, canela e cinamomo,
toda espécie de árvores de incenso,
mirra e aloés,
os melhores bálsamos.
A fonte do jardim
é como um manancial de água corrente
que brota do Líbano.
Desperta, Aquilão!
E tu, Austro, vem soprar em meu jardim,
para que se espalhem seus aromas!
Apelo da amada
Ela
Que entre o meu amado em seu jardim
para comer dos frutos deliciosos!
Ele
Já vou ao meu jardim, minha irmã
e minha noiva,
colher mirra e bálsamo,
comer do favo de mel, beber vinho e leite.
Coro
Amigos, comei!
bebei e embriagai-vos do amor!
QUARTO CANTO
Noturno
Ela
Eu estava dormindo, mas meu coração velava.
Atenção! O meu amado está batendo.
Ele
Abre, minha irmã e minha noiva,
minha pomba, meu primor!
Pois tenho a cabeça borrifada de orvalho,
e do sereno da noite, minha cabeleira.
Ela
Já despi minha túnica:
hei de vesti-la novamente?
Já lavei os pés:
hei de sujá-los outra vez?
O meu amado meteu a mão na fechadura,
fazendo-me estremecer em meu íntimo.
Em busca do amado
Ela
Levantei-me para abrir ao meu amado,
minhas mãos gotejando mirra;
de meus dedos a mirra escorria
sobre o trinco da fechadura.
E então abri ao meu amado,
mas o meu amado já se tinha ido, já se tinha retirado.
Ansiei loucamente por falar-lhe:
procurei, mas não o encontrei;
chamei, mas não me respondeu.
Encontraram-me os guardas que faziam a ronda da cidade:
espancaram-me e me feriram;
arrancaram-me o manto as sentinelas das muralhas.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém:
se encontrardes o meu amado,
anunciai-lhe que desfaleço de amor!
Descrição do amado
Coro
O que distingue dos outros o teu amado,
ó mais bela entre as mulheres?
O que distingue dos outros o teu amado,
para que assim nos conjures?
Ela
O meu amado é branco e corado,
inconfundível entre milhares:
Sua cabeça é ouro puro,
a cabeleira é como leques de palmeira,
é negra como o corvo.
Seus olhos são pombos,
junto aos cursos de água,
banhando-se em leite,
detendo-se no remanso.
Suas faces são canteiros de bálsamos,
tufos de ervas aromáticas.
Seus lábios são como lírios,
a destilar um fluido de mirra.
Suas mãos são braceletes de ouro,
guarnecidas com pedras de Társis.
Seu corpo é marfim lavrado,
recoberto de safiras.
Suas pernas são colunas de alabastro,
assentadas em bases de ouro.
Seu aspecto, como o Líbano, airoso como os cedros.
Sua boca é só doçura; todo ele, pura delícia.
Tal é o meu amado, assim é o meu amigo,
ó filhas de Jerusalém.
Encontro com o amado
Coro
Aonde foi o teu amado,
ó mais bela das mulheres?
Para onde se dirigiu o teu amado?
Iremos contigo à sua procura.
Ela
O meu amado desceu ao seu jardim,
aos canteiros de bálsamos,
para apascentar nos vergéis e colher lírios.
Eu sou do meu amado, e o meu amado é todo meu.
Ele é um pastor entre lírios.
QUINTO CANTO
Prendas da amada
Ele
És formosa, minha amiga, como Tersa,
encantadora como Jerusalém,
esplêndida como as constelações.
Aparta de mim teus olhos, porque eles me perturbam!
Teus cabelos são como um rebanho de cabras,
esparramando-se pelas encostas de Galaad.
Teus dentes são como um rebanho de ovelhas,
recém-saídas do lavadouro;
cada um com seu par, sem perda alguma.
Tuas faces são metades de romã,
na transparência do véu.
A predileta
Ele
Sessenta são as rainhas,
oitenta as concubinas,
além de numerosas donzelas.
Uma só, porém, é a minha pomba, o meu primor:
única é ela para sua mãe,
é o encanto de quem a gerou.
Ao vê-la, felicitam-na as donzelas,
louvam-na as rainhas e as concubinas.
Coro
Quem é esta que surge como a aurora,
bela como a luz, brilhante como o sol,
esplêndida como as constelações?
Ele
Desci ao horto das nogueiras
para examinar os brotos da várzea
e ver se as vides já brotavam,
se floresciam as romãzeiras.
Sem me aperceber, minha fantasia me transportou
até às carruagens da nobre comitiva.
A dança
Coro
Retorna, Sulamita, retorna!
Retorna, para podermos contemplar-te, retorna!
Ele
O que vedes na Sulamita,
quando dança entre dois coros?
Como são belos teus passos nas sandálias,
ó filha de príncipes!
Os contornos de teus quadris são como colares:
obra das mãos de artista.
Teu umbigo é uma taça redonda:
não lhe falte vinho mesclado!
Teu ventre é um monte de trigo, cercado de lírios.
Teus seios são como duas crias,
como gêmeos de gazEla
Teu pescoço é como uma torre de marfim.
Teus olhos são como as piscinas de Hesebon,
junto à Porta Maior.
Teu nariz é como a torre do Líbano,
sentinela sobre Damasco.
Tua cabeça sobressai como o Carmelo;
e as madeixas de tua cabeça são como fios de púrpura,
que nos tanques um rei mantém amarrados.
Protestos de amor
Ele
Como és formosa e encantadora,
ó
delicioso amor!
Teu talhe assemelha-se a uma palmeira,
e teus seios a cachos.
Eu disse: "Vou trepar pela palmeira
e agarrar-me às suas frondes".
Teus seios devem ser como racemos na cepa,
teu hálito como a fragrância das maçãs,
tua boca, como vinho generoso.
Ela
Ele flui suavemente para meu amado
deslizando pelos lábios dos adormecidos!
Eu sou do meu amado,
e ele arde em desejos por mim.
Canção do encontro
Ela
Vem, meu amado, saiamos ao campo!
Passaremos a noite nas aldeias,
madrugaremos para ir aos vinhedos,
ver se as vides lançaram rebentos
ou se já se abrem suas flores,
se florescem as romãzeiras.
Ali te darei o meu amor.
As mandrágoras exalam seu perfume,
e à nossa porta há mil frutas deliciosas,
tanto frescas como secas,
que para ti, meu amado, reservei.
Anelos de amor
Ela
Quem me dera que fosses meu irmão,
amamentado aos seios de minha mãe!
Encontrando-te pela rua, beijar-te-ia,
sem que alguém me desprezasse.
Eu me farei teu guia para introduzir-te
na casa de minha mãe, que me criou;
dar-te-ei a beber vinho aromático e suco de minhas romãs.
Sua esquerda apóia minha cabeça,
e sua direita me abraça.
Ele
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
que não acordeis nem desperteis a amada,
antes que ela queira.
SEXTO CANTO
Triunfo de amor
Coro
Quem é esta que surge do deserto,
apoiada no seu amado?
Ele
Debaixo da macieira eu te despertei,
onde tua mãe, em dores, por ti se consumia,
onde se consumia em dores quem te deu à luz.
Ela
Põe-me como um selo sobre teu coração,
como um selo sobre teu braço!
Porque é forte o amor como a morte,
e a paixão é violenta como o abismo:
suas centelhas são centelhas de fogo,
labaredas divinas.
Águas torrenciais não conseguirão apagar o amor,
nem rios poderão afogá-lo.
Se alguém quisesse comprar o amor,
com todos os tesouros de sua casa,
se faria desprezível.
A amada e seus irmãos
Irmãos.
Temos uma irmãzinha,
ainda sem seios.
O que faremos por nossa irmã,
quando alguém pedir sua mão?
Se ela é uma muralha,
vamos construir-lhe ameias de prata;
se é uma porta,
vamos reforça-la com pranchas de cedro.
Ela
Agora já sou uma muralha,
e meus seios são como torres.
E assim tornei-me a seus olhos
a mulher a encontrar a paz.
A vinha de Salomão
Ela
Salomão tinha uma vinha em Baal-Hamon.
Entregou a vinha a cultivadores;
por seus frutos se pagaria
mil siclos de prata.
Sobre minha vinha, porém, disponho eu:
para ti, Salomão, os mil siclos,
e duzentos para os cultivadores de seus frutos.
Intimidade do amor
Ele
Tu que habitas nos jardins,
com companheiros a escutar a tua voz,
deixa-me ouvi-la!
Ela
Vai depressa, meu amado,
– imitando a gazela ou sua cria –,
para os montes perfumados!
Bíblia: Antigo Testamento: Eclesiastes.
Ilustração: Marc Chagall (1887-1985): Cântico dos Cânticos II (10), 1957.