CARTA DE MÁRIO DE ANDRADE AO AMIGO MANUEL BANDEIRA, desculpando-se por não ter ido visitá-lo, conforme prometera.
“Querido
Manuel. Depois perdoarás. Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos:
Dois dias de carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e
observar. Na segunda- -feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis.
Voltarei à noite para ver os afamados cordões. Meu Manuel...Carnaval! Perdi o
trem, perdi a vergonha, perdi a energia... Perdi tudo. Menos minha faculdade de
gozar, de delirar...Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima.
Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas... Que delicia, Manuel, o carnaval
do Rio! Que delícia, principalmente, meu carnaval! Se estivesse aqui, a meu
lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te
escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e perdão. (...) Meu cérebro acanhado,
brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades
de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria que sei! Nunca seria capaz
de imaginar um carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o
paulistanamente. Havia um que de neblina, de ordem, de aristocracia nesse
delírio imaginado por mim. Eis que sábado, às 13 horas, desemboco na Avenida.
Santo Deus! Será possível!... Sabes: fiquei enjoado. Foi um choque terrível.
Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não
suportar um dia funçanata chula, bunda e tupinambá. Cafraria vilissima,
dissaborida. Última análise: “Estupidez”! Assim julguei depois de dez minutos
que não ficaria meia hora na cidade. Mas, por isso talvez que tanto tenho
sofrido dos julgamentos levianos, jurei para mim olhar sempre as coisas com
amor e procurar compreendê-las antes de as julgar. Comecei a observar. Comecei
a compreender. Uma conversa iluminava-me agora sobre uma ridícula baiana que há
pouco vira. A pobreza de uns explicava-me a brincadeira. Admirei repentinamente
o legitimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula,
canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entontece e me
extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual.
Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café.
Entrei. Outra hora se gastou. Manuel: sem comprar um lança-perfume, uma rodela
de confeti, um rolo de serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos
dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te.”