quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O CENTENÁRIO DA VILA ZÉLIA
São Paulo, no início do século XX, não era um mar de rosas tanto para os industriais quanto para os trabalhadores. Os primeiros porque viam seus lucros ameaçados pela própria falta de responsabilidade social e os segundos porque enfrentavam jornadas de trabalho de 12 horas ou mais, péssimas condições de trabalho e baixos salários, que impediam o acesso de trabalhadores a moradias dignas. As greves, tratadas como caso de polícia por patrões e autoridades, começaram a se multiplicar.
Nesse cenário, destaca-se o carioca Jorge Street (1863-1939). Como médico Jorge Street costumava não cobrar dos pobres porque não podiam pagá-lo nem dos ricos porque eram seus amigos. Quando herdou do pai as ações da tecelagem de juta “São João”, trocou o estetoscópio pelos teares e logo depois (1904) também mudava do Rio porque percebeu que era em São Paulo que se encontravam as melhores oportunidades para os negócios: São Paulo era o principal produtor de café e a juta, o material utilizado na confecção de sacaria (até hoje). Nesse ano, ampliou os negócios, comprando do conde Álvares Penteado a tecelagem de juta “Santana” no Brás, por 13 mil contos de réis. Os resultados não poderiam ser melhores e quatro anos depois fechou a fábrica do Rio, transferindo o equipamento para São Paulo, onde investiu também em uma tecelagem de algodão e de uma fábrica no bairro do Belenzinho.
Jorge Street tornou-se um dos mais importantes industriais do Brasil e se destacou também ao defender a criação dos sindicatos: “À medida que os sindicatos se tornam mais fortes e mais ricos vão compreendendo que podem tratar pacificamente com os capitalistas as condições de trabalho assalariado, sem socorrer-se do recurso extremo da greve. [...] longe de nos opormos a essa marcha, devemos colaborar e facilitar o progresso.” Uma visão romântica da questão, mas fundamental na época. Durante a greve de 1917 reconheceu a União dos Operários em Fábricas de Tecido para horror dos patrões.
O fato é que Street preocupava-se com a situação dos trabalhadores. Diariamente, percorria as fábricas. Muitas vezes visitava trabalhadores em casa e o que via nessas ocasiões o desolava. Decidiu então construir a Vila Maria Zélia, no Belém. O prof. Jacques Marcovitch (FEA/USP) afirma que “nenhuma vila operária (brasileira) pode se comparar à Maria Zélia na qualidade do projeto arquitetônico das casas e dos prédios de uso comum”.
O arquiteto francês Paul Pedraurrieux, contratado por Street, criou uma pequena cidade de padrão europeu do início do século passado. Com seis ruas principais e duas transversais que se estendiam num terreno murado até o rio Tietê, na vila foram construídas 198 casas térreas, pintadas de amarelo. Como Street queria: “Morada sã, com bastante sol e luz, e os cômodos de acordo com as necessidades das famílias operárias comuns”.  As portas e janelas eram de madeira maciça - pintadas de cor marrom. O assoalho era de pinho de riga. As moradias menores tinham um quarto, sala, cozinha e banheiro (74,75m²) e as maiores dispunham de três ou quatro quartos (110,40 m²).  O aluguel variava entre 20$000 e 30$000 mil réis.
Se precisassem ir ao centro de São Paulo, bastava tomar o bonde Vila Maria – Largo da Concórdia; porém, os moradores dispunham de vários serviços na própria vila: creche, jardim da infância, duas escolas (a dos meninos e das meninas), consultórios médicos e odontológicos, farmácia, armazém, açougue e restaurante; mais igreja, teatro, salão de baile, quadras esportivas e um campo de futebol. A creche gratuita possuía seis dormitórios com capacidade para 15 leitos cada um. Cada salão, que era cuidado por duas funcionárias, tinha dois pequenos banheiros com água quente e fria.
Em 2015, visitei a Vila Maria Zélia ou o que restou dela. Na Rua dos Prazeres só há tristeza pelo descaso com que é tratado nosso patrimônio histórico. Quando conseguiram o tombamento da vila, ela praticamente perdera as características originais. A área encolheu. A creche desapareceu, cedendo espaço para outros empreendimentos. Os prédios principais estão caindo aos pedaços e, como pertencem ao INSS, é questão de tempo que se desfaçam em poeira. Apenas a Igreja mantém-se, aparentemente, em boas condições. Na praça acolhedora, uma antiga moradora descansa com seu cão. Ela estudou na escola das meninas, mais tarde casou e deixou a vila para onde voltou há cerca de 40 anos, quando o lugar já estava deteriorado pela incúria geral. Ela também lamenta o que aconteceu com lugar. Dizem que produtores de novelas e filmes têm usado o espaço para cenário de suas histórias de época. Difícil imaginar como conseguem porque eu só vi as ruínas de um legado.

(Maria Zélia era o nome da filha de Street, que morreu muito jovem. O destino da Vila: em 1924 foi vendida para a família Scarpa e passou a se chamar Vila Scarpa; em 1929 por causa de dívida passou para o grupo Guinle que lhe devolveu o nome antigo; em 1931, a fábrica foi desativada e a vila, que era particular, passou para o governo federal, que a usou como presídio durante o Estado Novo. Fotos: Hilda Araújo. )




Publicado originalmente em 11 de agosto de 2015.

Nenhum comentário: