terça-feira, 8 de agosto de 2023

A LUA, O LUAR E DOIS POETAS.

 

O poema mais conhecido do mineiro Alphonsus Guimaraes (1870-1921) é “Ismália”, que fazia parte da antologia de poetas brasileiros adotada pelo Liceu Feminino Santista, lá pelos idos de 1960. A professora só não ensinou que em grego o nome da personagem significa desejo de amor.

ISMÁLIA

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

 

No centenário de nascimento de Alphonsus Guimaraes, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu “Luar para Alphonsus” em homenagem ao conterrâneo.

 

LUAR PARA ALPHONSUS

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

Mas não é para soltar foguete nem fazer
os clássicos discursos ao povo mineiro
dando ao espectro do poeta o que faltou ao poeta
numa vida banal sem esperança.

É para sentir o luar
extra que envolve
Ouro Preto, Mariana, Conceição
filtrado suavemente
da poesia de Alphonsus, no silêncio
de sua mesa de juiz municipal
meritíssimo poeta do luar.

Algum estudante, sim, espero vê-lo
debruçado sobre a Pastoral aos crentes
do amor e da morte, penetrando
o cerne doceamargo
de um verso alphonsino cem por cento.
Algum velho da minha geração,
uns poucos doidos mansos, e quem mais?
Onde o poeta assiste, não há cocks
autógrafos, badalos, gravações.
Está cerrado em si mesmo (tel qu’en lui-même
enfin l’éternité le change
…)
e descobri-lo é quase um nascimento
do verbo:
cada palavra antiga surge nova
intemporal, sem desgaste vanguardista, lua
nova, na página lunar.

E essa lua eu peço: aquela mesma
barquinha santa, gôndola
rosal cheio de harpas
urna de padre-nossos
pão de trigo da sagrada ceia
lua dupla de Ismália enlouquecida
lua de Alphonsus que ele soube ver
como ninguém mais veria
de seus mineiros altos miradouros.

O poeta faz cem anos no luar.


Ilustração: "Lua Cheia" (1919), de Paul Klee (1879-1940). 

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