Para marcar o aniversário
da fundação da cidade de São Paulo escolhi dois apaixonados por São Paulo: o sociólogo
José de Souza Martins (1938), professor emérito da USP aposentado, detentor de três Prêmios Jabuti, e o jornalista e
poeta Paulo Bomfim (1926-2019). Tive o imenso prazer de entrevistar os dois. As
caminhadas de Souza Martins pela cidade resultaram em crônicas fascinantes, que
conduzem o leitor da realidade cotidiana para a história, as tradições e as
lendas de São Paulo. É, na minha opinião, o melhor cronista de São Paulo. Paulo Bomfim fez declarações de amor pela
cidade em prosa e verso, sempre impecáveis. Escolhi o poeta, porque gosto
demais do que ele nos deixou, mas há um fato curioso que une os dois escolhidos. Na dedicatória de seu
livro “O coração da Pauliceia ainda bate” (2017), Souza Martins afirma que foi
a poesia de Bomfim que o ensinou a compreender e amar São Paulo. O texto abaixo é excerto de uma das crônicas dele.
SOUZA MARTINS
“HÁ POUCO MAIS DE CEM
ANOS, a cidade de São Paulo começou a ganhar sua feição social e culturalmente
pluralista, o que acabou fazendo dela uma das emblemáticas cidades cosmopolitas
do mundo. Acolheria não só estrangeiros que aqui se tornariam brasileiros sem
perder a poesia de sua origem, mas brasileiros de todos os cantos que aqui se
abrasileirariam nos horizontes de um novo Brasil. A humanidade mora aqui, lugar
de encontro e diversidade. Tanto há espaço para os que buscam refúgio nos
nichos de conservadorismo político e cultural, quanto há espaço para os que
buscam o agito colorido das inovações, mesmo as que parecem sem pé nem cabeça. Tudo
acaba dando certo na tolerância inevitável de uma metrópole em que a
diversidade social e cultural é tão grande que não há como resistir a ela e não
há como não aprender com ela.
O povoado de São Paulo do Campo nasceu em 25
de janeiro de 1554 como uma escola, tendo como um dos mestres um dos maiores
criadores de cultura da história da invenção do Brasil, que foi o jovem padre,
teatrólogo, linguista e poeta José de Anchieta, descendente de judeus pelo lado
materno. (...)” Jornal O ESTADO DE S. PAULO, 25 de janeiro de 2010: “O espírito de São
Paulo”.
PAULO BOMFIM
"Minha insólita metrópole, capital de todos os absurdos!
Música eletrônica em fundo de serenata, paisagem cubista com
incrustações primitivas, poema concreto envolto em trovas caboclas.
Cidade feita de cidades, bairros proclamando independência, ruas
falando dialetos, homens com urgência de viver.
Oceano feito de ilhas. Ilhas chegando, ilhas sangrando, ilhas
florindo.
Os céus cansados do concreto que arranha. Cresce o mar das
periferias.
No barco dos barracos navega um sonho. No fundo de cada um dos
cidadãos do mundo, dorme a província.
Ali a velha igreja com seu campanário esperando a mantilha da
noite.
Anúncios luminosos piscam obsessões. O asfalto é irmandade de
credos.
No centro, todos os vícios e todas as virtudes convivem nas
esquinas da São João.
Os domingos são quadrados. Cabem dentro da tela de cinema, do
aparelho de televisão, da página do jornal, do campo de futebol.
O metrô é mergulho no inconsciente urbano. Nele o mesmo silêncio
dos elevadores. Convívio de sonâmbulos, de antípodas da fila de ônibus e do
trem de subúrbio onde há tempo para o cansaço florir num sorriso.
Aqui o verde é esperança cobrindo o frio de existir.
Teatros e o ballet da multidão, museus contemplando o quadro dos
que se agitam, orquestras e a sinfonia de uma época em marcha.
Nestes tempos modernos, Carlito operário ou estudante, comerciário
ou burocrata, é técnico em sobreviver.
Planalto dos desencontros, porto dos aflitos, rosa de eventos
onde até o futuro tem pressa de chegar.
Mal-amada cidade de São Paulo, EU TE AMO!"
FONTE: https://www.paulobomfim.com.br/São Paulo: julho de 2023.