Em
um desses impulsos inexplicáveis, peguei emprestado na biblioteca um livro do médico
Drauzio Varella (1943) sobre corridas. Quantas vezes vejo o ônibus lá no ponto se
abastecendo de passageiros e penso que se desse uma corrida poderia me juntar
ao grupo; mas prefiro “deixar para lá” e esperar o próximo. Correr por esporte
nunca foi uma opção. Maratona então nem pensar. Ao ler o título completo – “Correr
– O exercício, a cidade e o desafio da Maratona” – deduzo que foi a cidade que
me atraiu para essa leitura.
Foi uma boa escolha, mas gostei
mesmo de acompanhá-lo nas corridas que ele fez pelo Minhocão e pelo Centro da
cidade, porque encontrei muita semelhança com a minha experiência de caminhante.
Claro que não vou andar às seis da manhã, nem pelo elevado e tampouco no
Centro. Prefiro horários mais amenos. Fui duas vezes caminhar no viaduto João
Goulart e apreciei a paisagem, os frequentadores e “a altura privilegiada que
oferece ao transeunte possibilidade de bisbilhotar o interior dos apartamentos”.
Coisa que gosto de fazer. Foi assim que o garotinho sentado na varanda, devidamente
protegida por uma tela, me acenou todo sorridente quando me viu passar; que notei
uma cozinha tão bem organizada que me deu vontade de cumprimentar o/a proprietário
(a); ou ser desestimulada de bisbilhotar por uma máscara de caveira estrategicamente
colocada à janela. Roupas secando dependuradas em varais ou estendidas no
peitoril das janelas. Sapatos e tênis tomando sol. E as cortinas branquinhas balançando
ao vento de um domingo quente? Um bichano junto à rede de proteção da varanda parece
muito interessado no que se passa lá embaixo na São João...
Já percorri o viaduto da Praça Roosevelt
ao Largo Padre Péricles que desconhecia completamente. Pergunto a um senhor
onde é o metrô da Barra Funda, ele indica o caminho e afirma que caminhar faz
bem. Com certeza – só o viaduto tem 3,4 km.
Já a corrida do Dr. Varella pelo
Centro é peculiar e um dia vou reproduzi-la à minha moda – ou seja, andando. À medida
que corre, ele registra aspectos arquitetônicos e históricos dos lugares por
onde passa. Ele começa na Rua Maria Antônia, segue pela Rua Consolação em
direção à avenida Ipiranga, passa pela boate Love Story (Rua Araújo) – que fechou
faz tempo; na Praça da República, entra no calçadão da Barão de Itapetininga (“e
já estou no meio dos prédios mais encantadores da cidade”).
Dr. Varella traça um retrato realista dos
moradores de rua, usuários de crack, desocupados que se espalham pelo Centro,
mas nem por isso escapa ao seu olhar o casal que dormia juntinho num colchão em
um canto abrigado da rua... A descrição que ele faz da primeira vez que se viu
em meio à Cracolândia, na esquina das Ruas Helvétia e Dino Bueno, foi muito
semelhante à minha experiência naquele local: uma visão chocante, que no
primeiro instante causa dúvida – seguir em meio àquela gente maltrapilha (homens,
mulheres de todas as idades e crianças), suja, alucinada que andava de uma lado
para o outro ou se mantinha no chão? Avaliei o que vi e resolvi seguir,
caminhando normalmente, passei por eles e ninguém sequer reparou em mim. Ocupavam
apenas um quarteirão. Hoje espalham-se pela cidade. Passo por eles quase todos os dias na região da Sé. É um gravíssimo problema
social.
O livro é de 2015, Companhia Das Letras.
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