OS AMIGOS HARVEY
A loucura me fascina e sinto uma enorme simpatia pelos loucos que
encontro em meu caminho. O motivo é muito simples: quem define que uma pessoa é
louca? Quem estabeleceu que este ou aquele comportamento indicam insanidade? O
que é normal? O assunto surgiu porque esta semana perdi a oportunidade de rever,
nos Encontros Culturais do prof. Terron, na USP, um clássico do cinema que trata com sutileza essa
questão: “Meu amigo Harvey” (Harvey),
dirigido por Henry Koster e lançado em 1950. E reproduz bem o ditado popular
que diz ”Não são todos os que estão, nem estão todos os que são”.
“A primeira observação que temos a fazer é o óbvio
que tantas vezes se esquece: os loucos não são burros”, como bem diz o
psiquiatra Juan Antonio Vallega-Nágera. E costumam ser manipuladores. Elwood
(Stewart) tem um amigo chamado Harvey e
encanta as pessoas da cidadezinha onde mora com suas histórias até que revela a
identidade do amigo e torna claro a sua condição de maluco para nossa sociedade
organizada “racionalmente”. Sem revelar a trama, que é ótima, diria apenas que
um dia Harvey o abandona e, aparentemente, Elwood recupera o juízo. Não
necessariamente, pois doenças mentais costumam ser episódicas.
A história do mundo está repleta de casos de
líderes, artistas e intelectuais com sérios problemas mentais. Um dos casos
mais interessantes é o da rainha Joana de Castela (1479-1555), filha dos reis Fernando
e Isabel de Espanha, patrocinadores de Cristóvão Colombo. Era uma jovem bela e
culta. Aos 16 anos casou-se com o arquiduque Felipe de Habsburgo e foi para
Bruges. A doença mental manifestou-se aos 24 anos e em princípio foi vista como
ciúmes do marido e pelo temperamento forte. Com o tempo o quadro agravou-se,
mas com enganosos períodos de serenidade.
Felipe tentou mantê-la em reclusão no castelo, sem
sucesso. Quando Isabel morreu, Joana viajou para a Espanha a fim de assumir a
coroa, e Felipe a acompanhou com a pretensão de assumir o governo; entretanto,
precisava provar a insanidade da mulher. Em toda essa tragédia familiar e
política, Joana se mostrou uma figura fascinante. Nas entrevistas com membros
do parlamento tanto da situação e quanto da oposição, ela se mantém segura e
coerente. A morte do marido tornou mais evidente os problemas mentais,
especialmente, porque ela se apegou ao cadáver, iniciando uma peregrinação com
o corpo de Felipe. Nunca conseguiram tirar-lhe a coroa. Desde a morte da rainha
Isabel, D. Fernando, o pai, assumiu a regência e, quando ele morreu, o problema
foi resolvido de forma salomônica: respeitaram, nominalmente, os direitos da rainha
louca ao poder e enquanto o filho assumia o trono, como monarca de fato. Joana
permaneceu reclusa em Tordesilhas por 55 anos até que, além do sofrimento
mental, surgiram os físicos: em consequência de ficar dia e noite em pé, apareceram
edemas nas pernas e formaram-se ulcerações extremamente dolorosas e morreu em
decorrência das feridas infectadas.
Vallega-Nágera em seu livro “Loucos Egrégios” (Guanabara
Dois. Rio de Janeiro, 1979) faz uma análise minuciosa da doença de Joana e
repudia com veemência as lendas em torno da princesa que teria enlouquecido de
amor. Na Wikipédia chegam a dizer que não a deixaram governar como se fosse
possível para ela assumir o comando do reino. Vallega-Nágera explica que “os
doentes mentais, mesmo os mais graves, não se portam anormalmente sempre, mas
sim quando entram em jogo os seus sintomas; o resto do tempo podem aparentar e
manter normalidade”.
Há anos, na USP, fui entrevistar um rapaz com distúrbios
mentais. Como era ex-aluno, justifiquei o interesse da reportagem pela
permanência dele na universidade por tantos anos; ele não se deixou enganar, recusou-se a contar sua história e explicou como uma entrevista anterior provocara a sua internação, que fora um
período doloroso; e terminou me convencendo de que começaria a trabalhar na semana
seguinte. Eu acreditei, mas no outro dia o vi em meio a uma crise dolorosa no
pátio da FFLCH.