sábado, 28 de outubro de 2017

OS AMIGOS HARVEY
A loucura me fascina e sinto uma enorme simpatia pelos loucos que encontro em meu caminho. O motivo é muito simples: quem define que uma pessoa é louca? Quem estabeleceu que este ou aquele comportamento indicam insanidade? O que é normal? O assunto surgiu porque esta semana perdi a oportunidade de rever, nos Encontros Culturais do prof. Terron, na USP, um clássico do cinema que trata com sutileza essa questão: “Meu amigo Harvey” (Harvey), dirigido por Henry Koster e lançado em 1950. E reproduz bem o ditado popular que diz ”Não são todos os que estão, nem estão todos os que são”.
“A primeira observação que temos a fazer é o óbvio que tantas vezes se esquece: os loucos não são burros”, como bem diz o psiquiatra Juan Antonio Vallega-Nágera. E costumam ser manipuladores. Elwood (Stewart) tem um amigo chamado Harvey e encanta as pessoas da cidadezinha onde mora com suas histórias até que revela a identidade do amigo e torna claro a sua condição de maluco para nossa sociedade organizada “racionalmente”. Sem revelar a trama, que é ótima, diria apenas que um dia Harvey o abandona e, aparentemente, Elwood recupera o juízo. Não necessariamente, pois doenças mentais costumam ser episódicas.
A história do mundo está repleta de casos de líderes, artistas e intelectuais com sérios problemas mentais. Um dos casos mais interessantes é o da rainha Joana de Castela (1479-1555), filha dos reis Fernando e Isabel de Espanha, patrocinadores de Cristóvão Colombo. Era uma jovem bela e culta. Aos 16 anos casou-se com o arquiduque Felipe de Habsburgo e foi para Bruges. A doença mental manifestou-se aos 24 anos e em princípio foi vista como ciúmes do marido e pelo temperamento forte. Com o tempo o quadro agravou-se, mas com enganosos períodos de serenidade.
Felipe tentou mantê-la em reclusão no castelo, sem sucesso. Quando Isabel morreu, Joana viajou para a Espanha a fim de assumir a coroa, e Felipe a acompanhou com a pretensão de assumir o governo; entretanto, precisava provar a insanidade da mulher. Em toda essa tragédia familiar e política, Joana se mostrou uma figura fascinante. Nas entrevistas com membros do parlamento tanto da situação e quanto da oposição, ela se mantém segura e coerente. A morte do marido tornou mais evidente os problemas mentais, especialmente, porque ela se apegou ao cadáver, iniciando uma peregrinação com o corpo de Felipe. Nunca conseguiram tirar-lhe a coroa. Desde a morte da rainha Isabel, D. Fernando, o pai, assumiu a regência e, quando ele morreu, o problema foi resolvido de forma salomônica: respeitaram, nominalmente, os direitos da rainha louca ao poder e enquanto o filho assumia o trono, como monarca de fato. Joana permaneceu reclusa em Tordesilhas por 55 anos até que, além do sofrimento mental, surgiram os físicos: em consequência de ficar dia e noite em pé, apareceram edemas nas pernas e formaram-se ulcerações extremamente dolorosas e morreu em decorrência das feridas infectadas.

Vallega-Nágera em seu livro “Loucos Egrégios” (Guanabara Dois. Rio de Janeiro, 1979) faz uma análise minuciosa da doença de Joana e repudia com veemência as lendas em torno da princesa que teria enlouquecido de amor. Na Wikipédia chegam a dizer que não a deixaram governar como se fosse possível para ela assumir o comando do reino. Vallega-Nágera explica que “os doentes mentais, mesmo os mais graves, não se portam anormalmente sempre, mas sim quando entram em jogo os seus sintomas; o resto do tempo podem aparentar e manter normalidade”.

Há anos, na USP, fui entrevistar um rapaz com distúrbios mentais. Como era ex-aluno, justifiquei o interesse da reportagem pela permanência dele na universidade por tantos anos; ele não se deixou enganar, recusou-se a contar sua história e explicou como uma entrevista anterior provocara a sua internação, que fora um período doloroso; e terminou me convencendo de que começaria a trabalhar na semana seguinte. Eu acreditei, mas no outro dia o vi em meio a uma crise dolorosa no pátio da FFLCH. 

3 comentários:

Amante da Música disse...

É sempre uma pena quando você não aparece nos “Encontros”. Sua presença será sempre importante. As pessoas do grupo divertiram-se, e nas discussões tivemos, por parte de alguns participantes, revelações insuspeitáveis. Quanto ao nossos amigos Elwood P. Dowd e Harvey: este último abandonou Mr. Dowd, para ficar na companhia do médico psiquiatra, somente por alguns momentos, pois no final Harvey retorna para acompanhar seu antigo e querido amigo (xiii, dei spoiler? Rsrsrs). Terron

Amante da Música disse...

Excelente esta sua matéria!

Hilda Araújo disse...

Obrigada, professor. É sempre um grande prazer participar dos Encontros Culturais. A seleção de filmes e os temas são ótimos. Fiquei curiosa sobre "as revelações insuspeitáveis". Forte abraço.