sábado, 7 de agosto de 2021

CANTORES DE RUA

Ao passar por uma rua da Vila Mariana, escutei um som horrível e achei que alguém sentia-se mal; olhei em torno e percebi que era um rapaz com fones de ouvido cantando. Bem, pelo menos ele achava que estava. A música? Irreconhecível. Lembrei-me que houve um tempo em que as pessoas costumavam cantar na rua composições suas, de amigos ou músicas populares. Há alguns anos estava no Conjunto Nacional, quando ouvi uma voz maravilhosa cantando a “Bachiana nº 5”, de Villa-Lobos. Não resisti e fui até a entrada da Avenida Paulista ouvir a soprano que nos presenteava com tão linda interpretação; porém, os pedestres passavam apressados sem perceber a beleza.

        Faz algum tempo também que um operário na construção de um prédio vizinho de vez em quando soltava a voz. Boa voz e afinado. Nos vagões do metrô, embora seja proibido, frequentemente, aparecem cantores ou conjuntos musicais, alguns até bons.

        Parece que foram os apaixonados que inventaram a moda de cantar na rua e isso ainda na Idade Média na Europa. Cantavam à noite sob as janelas das donzelas trancafiadas em casa por pais ciosos de sua honra. Os portugueses denominaram esse costume de serenata e a esses cantores chamaram de serenistas, sereneiros e seresteiros.

        Vencida a vastidão do Atlântico em 1500, o costume da serenata chegou ao Brasil apenas no século XVIII, quando um francês em viagem pela colônia registrou o costume em Salvador, segundo José Ramos Tinhorão (1928-2021). Em meados do século XIX, os melhores cantores foram recebidos em salões e, na rua, a situação mudou com o surgimento dos cantores de modinhas, artistas anônimos, geralmente negros, preocupados em alcançar distinção social igual a dos cantores de salão. Esses cantores divulgavam também as composições de outros artistas anônimos.

O Xisto Bahia (1841-1894) foi o mais famoso trovador de rua da Bahia. Mulato com voz de barítono ficou famoso como parceiro de Artur Azevedo (1855-1908) no teatro musicado carioca. Xisto começou como seresteiro em Salvador ao lado de rapazes da elite, como José Maria Paranhos (1819-1880), mais tarde barão do Rio Branco. Outro trovador que se destacou foi Artur Budd, que segundo Tinhorão, chegou a gravar discos na Alemanha para onde viajou em 1912.

 Uma bela imagem desses personagens feita por Manuel Quirino, autor de A Bahia de Outrora: “Da meia-noite em diante, um pouco tomado, as cordas do violão ou do cavaquinho gemiam, e ele, com o lenço amarrado ao pescoço e a ponta do cigarro detrás da orelha, dava as notas mais sentidas, arrancadas do coração, naturalmente, sem esforço.

        No século XX, a presença dos cantores de rua ou cantadores de modinhas ou modinheiros foi registrada por cronistas em várias cidades brasileiras. “Os poetas de calçada são as flores de todo o ano da cidade, são a sua graça anônima e sua sagração ‒ porque afinal o próprio Platão, que julgava Homero um envenenador público, considerava o poeta um ser leve alado e sagrado.” (João do Rio em “A alma encantadora das ruas”, 1951/52.)

Ilustração do Manuscrito encomendado por Alfonso X de Castela, o Sábio (1221-1284).

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