segunda-feira, 16 de agosto de 2021

MULATO FACEIRO

Escrever a autobiografia pode ser um exercício de vaidade, registro de memórias ou relato de experiências pessoais. Gosto muito quando encontro resumos autobiográficos em meio a uma obra e aprecio, especialmente, os depoimentos criativos como este do paulista Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919), artista negro que iniciou como palhaço e foi cantor, poeta, compositor e violonista de grande sucesso na época:

CRIOULO FACEIRO

Quando eu era molecote

Que jogava meu pião,

Já tinha certo jeitinho

Para tocar violão.

 

Quando eu ouvia,

Com harmonia,

A melodia

De uma canção,

Sentia gatos

Que me arranhavam,

Que me pulavam

No coração.

 

Fui crescendo, fui aprendendo,

Fui-me metendo na malandragem

Hoje sou cabra escovado,

Deixo os mestres na bagagem.

 

Quando hoje quero

Dar mão à lira,

Ela suspira,

Põe-se a chorar,

As moreninhas

Ficam gostando

De ver o crioulo

Preludiar.

 

Entrei na Estrada de Ferro

Fui guarda-freio destemido...

Veio aquela grande greve,

Por isso fui demitido.

 

 Era um tal chefe,

Que ali havia,

Que me trazia,

Sempre na pista;

Ah! não gostava

Da minha ginga;

Foi, apontou-me

Como grevista.

 

Como é o filho de meu pai

Do Grupo dos Estradeiros,

Fui para a Quarta Companhia

Lá do Corpo de Bombeiros.

 

Na Companhia

Estava alojado,

Todo equipado

De prontidão;

Enquanto esperava

Brando de fogo

Preludiava

No violão.

 

Fui morar em São Cristóvão

Onde morava meu mestre...

Depois de ter minha baixa

Fui pra companhia equestre.

 

Sempre na ponta

A fazer sucesso

Desde o começo

Da nova vida;

Rindo e brincando,

Nunca chorando,

Tornei-me firma

Bem conhecida.

 

Não me agasto em ser crioulo;

Não tenho mau resultado,

Crioulo sendo dengoso,

Traz as mulatas de canto chorado.

 

Meus sapatinhos

 De entrada baixa,

Calça bombacha,

Pra machucar;

As mulatinhas

Ficam gostando,

E se babando

C’ o meu pisar.

 

Fui a certo casamento...

Puxei ciência no violão,

Diz a noiva pra madrinha:

“Este crioulo é a minha perdição.

 

Estou encantada,

Admirada

Como ele tem

Os dedos leves...

Diga-me ao menos,

Como se chama?”

“Sou o crioulo

Dudu das Neves.”


Eduardo Sebastião das Neves é o autor da música “A Conquista do Ar” (1902), aqui interpretada por Bahiano. Apesar do sucesso e das gravações de suas composições, morreu muito pobre.


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