Escrever a autobiografia pode ser um exercício de vaidade, registro de memórias ou relato de experiências pessoais. Gosto muito quando encontro resumos autobiográficos em meio a uma obra e aprecio, especialmente, os depoimentos criativos como este do paulista Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919), artista negro que iniciou como palhaço e foi cantor, poeta, compositor e violonista de grande sucesso na época:
CRIOULO FACEIRO
Quando eu era molecote
Que jogava meu pião,
Já tinha certo jeitinho
Para tocar violão.
Quando eu ouvia,
Com harmonia,
A melodia
De uma canção,
Sentia gatos
Que me arranhavam,
Que me pulavam
No coração.
Fui crescendo, fui aprendendo,
Fui-me metendo na malandragem
Hoje sou cabra escovado,
Deixo os mestres na bagagem.
Quando hoje quero
Dar mão à lira,
Ela suspira,
Põe-se a chorar,
As moreninhas
Ficam gostando
De ver o crioulo
Preludiar.
Entrei na Estrada de Ferro
Fui guarda-freio destemido...
Veio aquela grande greve,
Por isso fui demitido.
Era um tal chefe,
Que ali havia,
Que me trazia,
Sempre na pista;
Ah! não gostava
Da minha ginga;
Foi, apontou-me
Como grevista.
Como é o filho de meu pai
Do Grupo dos Estradeiros,
Fui para a Quarta Companhia
Lá do Corpo de Bombeiros.
Na Companhia
Estava alojado,
Todo equipado
De prontidão;
Enquanto esperava
Brando de fogo
Preludiava
No violão.
Fui morar em São Cristóvão
Onde morava meu mestre...
Depois de ter minha baixa
Fui pra companhia equestre.
Sempre na ponta
A fazer sucesso
Desde o começo
Da nova vida;
Rindo e brincando,
Nunca chorando,
Tornei-me firma
Bem conhecida.
Não me agasto em ser crioulo;
Não tenho mau resultado,
Crioulo sendo dengoso,
Traz as mulatas de canto chorado.
Meus sapatinhos
De entrada baixa,
Calça bombacha,
Pra machucar;
As mulatinhas
Ficam gostando,
E se babando
C’ o meu pisar.
Fui a certo casamento...
Puxei ciência no violão,
Diz a noiva pra madrinha:
“Este crioulo é a minha perdição.
Estou encantada,
Admirada
Como ele tem
Os dedos leves...
Diga-me ao menos,
Como se chama?”
“Sou o crioulo
Dudu das Neves.”
Eduardo Sebastião das Neves é o autor da música “A Conquista do Ar” (1902), aqui interpretada por Bahiano. Apesar do sucesso e das gravações de suas composições, morreu muito pobre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário