segunda-feira, 21 de março de 2022

PREZADA DONA BRITES

 

Embora saiba que a senhora não irá ler esta carta, já deixo claro que estou ciente de que não se lembraria de mim, pois fui uma aluna comum numa classe de quarenta adolescentes. A senhora, entretanto, é inesquecível ‒ seus cabelos brancos impecavelmente penteados contrastando com o luto eterno que vestia, os sapatos ortopédicos e a sua falta de paciência com o excesso de hormônios das meninas que se enfileiravam todas as manhãs para cantar o Hino Nacional.

Confesso que não foi a senhora a primeira pessoa de que me lembrei hoje ao ler os jornais, mas de Dona Zulmira, que me deixou uma herança inesquecível: o bom uso da língua portuguesa. Naturalmente, o mundo mudou bastante e isso é muito bom. Lembro que a senhora fazia um escândalo quando percebia que uma das meninas não usava combinação. Pelos seus critérios, hoje nenhuma entraria em sala de aula. As moças nem sabem o que seja combinação. Sem contar que as meninas não têm mais exclusividade: o liceu é misto. O que acho muito bom.

Se a senhora se espanta com as novidades, imagino Dona Zulmira folheando os jornais! Foi dela que me lembrei ontem, por ao ler a manchete que trazia um “INCAÍVEL” com tipos muito maiores que o normal (talvez para ninguém duvidar do que lia). A palavra não existe em dicionários, portanto, é um erro crasso. Algumas páginas adiante um aviso de que “É preciso focar na aprendizagem e nas relações socioemocionais”. Focar... Ah! Essa existe, mas é um galicismo (uso altamente reprovado por dona Zulmira), que serve de muleta para editores na hora de fazer um título. Incentivar, apoiar, ater-se... E por aí vai.


Dona Olga Melchert, que lecionava Geografia, também estranharia estes tempos. Ainda folheio vez ou outra o velho “Atlas Geográfico Melhoramentos do Padre Geraldo José Pauwels” cuja primeira edição é de 1936. O meu exemplar é de 1959 e a cada página descortinam-se as grandes mudanças ocorridas na geografia política do mundo em mais de sessenta anos. Tive que comprar um novo atlas porque há muitos livros que gosto de ler com o atlas do lado para visualizar melhor a ação (livros de História, narrativas como Lawrence da Arábia, Sir Richard Burton etc.). Ela teria gostado porque renovaria o conteúdo da matéria.

O que teria sentido Dona Laurentina quando lesse o artigo de Francis Fukuyama (1952) sobre o fim da História? É possível que nos mandasse rezar uma oração pela salvação de sua alma, como fez no dia da execução do bandido da Luz Vermelha, o americano Caryl Chessman (1921-1960), condenado por estupro e homicídio na Califórnia. Oh! Céus!

Por hoje é só. Sei que não ficará aborrecida com a carta nem com os comentários (assim como as mestras citadas). Lembranças para dona Delta.



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