Em 2022 estava no Rio de Janeiro e fui
conhecer um dos últimos hangares de Zeppelin do mundo que fica em Santa Cruz,
que já foi cidade imperial. Vou de trem, trem parador. Embarco na Central do
Brasil. Dia quente. Trajeto longo. Uma senhora cochila no banco à minha frente.
Um homem sentado ao meu lado toma tranquilamente o café da manhã: pão e
salgadinhos. Tudo tranquilo. Um grupo comenta a política nacional e a guerra da
Ucrânia à moda de cada um. As estações vão passando: São Cristóvão, Maracanã
(onde assisti ao primeiro show de Paul McCartney no Brasil). As coisas
começam a mudar. Ambulantes aos poucos tomam conta do vagão oferecendo produtos
incríveis. O som do trem e o alarido dos vendedores tornam o ambiente
ensurdecedor. O homem termina o café, joga o lixo na lixeira e se acomoda
com o celular. Observo os vendedores. A maioria parece se conhecer de longa
data ‒ 90% são homens, usam basicamente bermudas, havaianas e camisetas coloridas.
Muitos carregam um fardo fantástico: numa haste em forma de bengala, penduram
as bugigangas que formam uma espécie de árvore de natal e engancham no apoio de
mãos do vagão para a freguesia escolher, enquanto eles vão de um lado para o
outro aos berros. Os passageiros brindados com penduricalho repleto de
mercadorias, que balouça de um lado para o outro no ritmo do veículo, têm que
se esquivar o tempo todo.
“Mangueira teu
cenário é uma beleza/ Que a natureza criou… Sei lá, não sei”. O samba é de
1956. A Mangueira que vejo da estação é um cenário triste. Meu vizinho liga
para o filho, quer saber se tomou café, manda o garoto agradecer à avó, indica
o canal de cartoon, desliga e se prepara para descer. A camiseta é
do Flamengo (parece que não tem nem fusca nem violão; será que “tem uma negra
chamada Teresa”?)
Ninguém morrerá de
sede ou fome nessa viagem extraordinária: água, refrigerante, cerveja;
biscoito, chocolates, empadinhas, canudinhos recheados com vários tipos de
creme, linguiça mineira com pimenta, bacon em cubos da Sadia. Mentex! Um senhor
embarca oferecendo café, leite, chocolate, e “deliciosos sanduíches”. Encontra
um conhecido, que o apresenta para o “auditório”: ele alugou a casa e mudou do antigo bairro
porque era difícil chegar ao trabalho. Despedem-se. O senhor vai oferecendo
seus produtos. Alguém vende um porta-joias para “guardar cordãozinho, brinquinhos e
aliança”. S. Francisco Xavier.
Todos aceitam cartões
e Pix. Riachuelo. Surge um idoso alcoolizado e de bengala. Engenho Novo. Avisa
que vai cantar. O repertório é de Roberto Carlos: “Eu tenho tanto para lhe
falar”, mas acabou aí e saiu levado por um conhecido no mesmo estado. Ninguém
reclamou. Passamos por um estádio (Estação Olímpica de Engenho de Dentro
‒ “Quem não saltar agora / Só em Realengo”) e pergunto ao meu
novo vizinho, se é de algum clube. Botafogo.
Um homem atende ao
telefone e diz aos berros que já está em Marechal Hermes. Mentira: estamos em
Piedade. O cantor volta e explica à plateia desinteressada que não pode cantar
porque está com a garganta seca. Pede água. Ninguém se mexe. Madureira ‒
“Madureira chorou de dor...” Eu de cansaço. Oswaldo Cruz (lugar de samba). Longas
pausas no percurso: Realengo, Mocidade/ Padre Miguel ‒ e não é que Padre Miguel
já foi Moça Bonita? Bangu ‒ onde avisto Vovó Kiki instalada num banquinho na
plataforma, vendendo quentinhas a R$ 10. Um vendedor entra animado, abre a
sacola e começa a vender facas. Facas?
Resolvo perguntar ao meu
vizinho se falta muito para Santa Cruz e ele começa a enumerar as estações
restantes entre as quais ouço Paciência. “Paciência eu tenho, moço.” Ele ri.
Enfim, chegamos à Santa Cruz! Esta é outra história.
O percurso de hora e
meia durou mais de duas horas, que me proporcionaram uma visão real do que você
imagina que sejam os subúrbios dos grandes centros brasileiros.
Estação de Santa Cruz, Rio de Janeiro.