sexta-feira, 15 de abril de 2022

CENTRAL DO BRASIL

Em 2022 estava no Rio de Janeiro e fui conhecer um dos últimos hangares de Zeppelin do mundo que fica em Santa Cruz, que já foi cidade imperial. Vou de trem, trem parador. Embarco na Central do Brasil. Dia quente. Trajeto longo. Uma senhora cochila no banco à minha frente. Um homem sentado ao meu lado toma tranquilamente o café da manhã: pão e salgadinhos. Tudo tranquilo. Um grupo comenta a política nacional e a guerra da Ucrânia à moda de cada um. As estações vão passando: São Cristóvão, Maracanã (onde assisti ao primeiro show de Paul McCartney no Brasil). As coisas começam a mudar. Ambulantes aos poucos tomam conta do vagão oferecendo produtos incríveis. O som do trem e o alarido dos vendedores tornam o ambiente ensurdecedor. O homem termina o café, joga o lixo na lixeira e se acomoda com o celular. Observo os vendedores. A maioria parece se conhecer de longa data ‒ 90% são homens, usam basicamente bermudas, havaianas e camisetas coloridas. Muitos carregam um fardo fantástico: numa haste em forma de bengala, penduram as bugigangas que formam uma espécie de árvore de natal e engancham no apoio de mãos do vagão para a freguesia escolher, enquanto eles vão de um lado para o outro aos berros. Os passageiros brindados com penduricalho repleto de mercadorias, que balouça de um lado para o outro no ritmo do veículo, têm que se esquivar o tempo todo.

 “Mangueira teu cenário é uma beleza/ Que a natureza criou… Sei lá, não sei”. O samba é de 1956. A Mangueira que vejo da estação é um cenário triste. Meu vizinho liga para o filho, quer saber se tomou café, manda o garoto agradecer à avó, indica o canal de cartoon, desliga e se prepara para descer. A camiseta é do Flamengo (parece que não tem nem fusca nem violão; será que “tem uma negra chamada Teresa”?)

Ninguém morrerá de sede ou fome nessa viagem extraordinária: água, refrigerante, cerveja; biscoito, chocolates, empadinhas, canudinhos recheados com vários tipos de creme, linguiça mineira com pimenta, bacon em cubos da Sadia. Mentex! Um senhor embarca oferecendo café, leite, chocolate, e “deliciosos sanduíches”. Encontra um conhecido, que o apresenta para o “auditório”:  ele alugou a casa e mudou do antigo bairro porque era difícil chegar ao trabalho. Despedem-se. O senhor vai oferecendo seus produtos. Alguém vende um porta-joias para “guardar cordãozinho, brinquinhos e aliança”. S. Francisco Xavier.

Todos aceitam cartões e Pix. Riachuelo. Surge um idoso alcoolizado e de bengala. Engenho Novo. Avisa que vai cantar. O repertório é de Roberto Carlos: “Eu tenho tanto para lhe falar”, mas acabou aí e saiu levado por um conhecido no mesmo estado. Ninguém reclamou. Passamos por um estádio (Estação Olímpica de Engenho de Dentro ‒ “Quem não saltar agora / Só em Realengo”e pergunto ao meu novo vizinho, se é de algum clube. Botafogo.

Um homem atende ao telefone e diz aos berros que já está em Marechal Hermes. Mentira: estamos em Piedade. O cantor volta e explica à plateia desinteressada que não pode cantar porque está com a garganta seca. Pede água. Ninguém se mexe. Madureira ‒ “Madureira chorou de dor...” Eu de cansaço. Oswaldo Cruz (lugar de samba). Longas pausas no percurso: Realengo, Mocidade/ Padre Miguel ‒ e não é que Padre Miguel já foi Moça Bonita? Bangu ‒ onde avisto Vovó Kiki instalada num banquinho na plataforma, vendendo quentinhas a R$ 10. Um vendedor entra animado, abre a sacola e começa a vender facas. Facas?

Resolvo perguntar ao meu vizinho se falta muito para Santa Cruz e ele começa a enumerar as estações restantes entre as quais ouço Paciência. “Paciência eu tenho, moço.” Ele ri. Enfim, chegamos à Santa Cruz! Esta é outra história.

O percurso de hora e meia durou mais de duas horas, que me proporcionaram uma visão real do que você imagina que sejam os subúrbios dos grandes centros brasileiros.  



Estação de Santa Cruz, Rio de Janeiro.

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