Para
quem não é do ramo, foca é todo jornalista no início da profissão. Comecei a
estagiar em abril de 1970, quando ainda cursava o quarto ano da faculdade. Tudo novidade. Na
redação, havia vários colegas da faculdade e alguns conhecia de vista desde os
tempos do colégio Canadá, como Tomás de Aquino, que devia estar com uns 23 anos
e já se destacava no jornalismo. Na
época, havia uma pedreira no bairro do Marapé que causava grandes transtornos
para a vizinhança e, vira e mexe, os moradores iam até o jornal reclamar,
pedindo que as autoridades tomassem providências contra a empresa extratora de
pedras.
Foi
por isso que a secretaria de saúde informou ao jornal que em tal dia faria uma
operação surpresa e eventual interdição da pedreira caso a empresa estivesse
infringindo a lei. Não sei o motivo que levou a chefia a escalar uma foca para
cobrir o evento. Talvez os experientes estivessem ocupados com coisas muito
mais importantes. O fato é que me deram todas as orientações possíveis e
avisaram que, eu e o fotógrafo, só deveríamos aparecer quando a fiscalização
chegasse. Em outras palavras: deveríamos ficar na moita até a hora H.
Fomos cedinho para o local e abandonados nas imediações da pedreira. E
assim passaram-se os minutos e as horas, e a manhã chegou ao fim sem que
ninguém da Secretaria de Saúde se materializasse. Na pedreira, o trabalho
seguia o ritmo, como pudemos constatar a cada explosão, seguida de nuvens de
poeira. Meu horário de trabalho era de 8 às 13 horas. O repórter fotográfico já
estava irritado, queria ir embora; munida de uma ficha telefônica, fui procurar
um telefone para ligar para o jornal. Atendeu Tomás de Aquino. Expliquei a
situação e concluí, como boa foca, que meu horário de saída era às 13 horas.
Ele era um gentleman. “Hilda, jornalista não tem hora para sair, mas se você
quiser mesmo vir embora eu envio um carro e um jornalista para o local.” Uma
lição inesquecível dada com toda classe.
Lembre-me dessa história porque hoje é dia de Tiradentes. Ainda cursava o colegial no colégio Canadá, quando assisti no anfiteatro do colégio a uma montagem do julgamento de Tiradentes feita pelos estudantes. Tomás de Aquino fazia o papel de advogado do inconfidente e, observando seu desempenho, imaginei que ele faria Direito. Foi uma surpresa encontrá-lo no jornal, onde já se destacava. Inteligente, bonito e elegante, dirigia um jipe descoberto. Faleceu no mesmo ano num acidente automobilístico em Guarujá.
Por falar em pedreira... Eu já não era foca. Estava trabalhando um
sábado à noite cobrindo folga ou férias de algum colega. A reportagem geral é bem
abrangente, pode até incluir um show, normalmente atribuição do pessoal de
Variedades, ou um crime, setor da equipe de polícia. Naquele sábado, entre
várias outras coisas, eu tinha que ir conferir uma assembleia do Sindicato dos
Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Santos, cuja sede era na Vila
Mathias, numa região repleta de hotéis de “curta permanência”, botecos e casas,
por assim dizer, suspeitas, embora todo mundo soubesse o que acontecia por lá. Quanto
a isso nenhum problema porque o jornal ficava nas imediações da velha “boca do
lixo” de Santos. Minha missão naquela noite era conversar com o presidente da entidade sobre as
reivindicações e combinar para pegar no dia seguinte o resultado assembleia e
seguir com o fotógrafo para a próxima reportagem.
O
sindicato funcionava num sobrado – subi as escadas, localizei o salão, abri a
porta e lá estavam dezenas de trabalhadores esperando sentados que a reunião
começasse. A mesa que conduziria os trabalhos ficava de frente para a porta e,
ao me ver, um dos líderes gritou indignado:
–
A senhora queira se retirar imediatamente! Esta é uma casa de respeito!
Todas
as cabeças se viraram para ver a indigna senhora que ousara invadir o local.
Suspirei fundo e respondi que eu era jornalista e estava ali por causa da
assembleia. Risadas da plateia e constrangimento do presidente que tratou de se
desculpar e me deu toda atenção tentando remediar a situação.
A NOITE DAS VAIAS
O
jornal planejara um caderno especial sobre a história do Carnaval de Santos.
Uma equipe de repórteres foi atrás dos diretores dos blocos e escolas de samba
mais antigos para entrevistá-los e localizar velhos foliões para narrassem suas
aventuras “momísticas”. Isso foi em meados dos anos 1970. Na minha lista,
constava o “Agora vai...”, bloco que desfilava apenas uma vez por ano no sábado
anterior ao Carnaval. Não gosto de Carnaval. Quando era criança, a rua em que
eu morava fazia parte do trajeto dos blocos e minhas tias me levaram algumas
vezes para assistir “Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?” – um desfile que
acontecia na orla da praia.
Na
época da entrevista o “Agora vai...” estava em decadência. O diretor da
agremiação marcou a entrevista à noite, na sede da Tricanas de Coimbra, que era
num sobrado no centro da cidade, onde aconteciam os ensaios. Como sempre os repórteres
dividiam a viatura do jornal e nessa ocasião estávamos eu, o fotógrafo e
cronista social. Na porta do sobrado, me identifiquei, mas o leão de chácara me
impediu de subir; expliquei que tinha entrevista marcada com a diretoria do
bloco. Ele estava irredutível. O cronista social resolveu intervir e, para
minha surpresa, teve permissão para entrar. Furiosa, aguardei o retorno dele e fui
autorizada a subir. Como a maioria dos sobrados, o térreo é um espaço destinado
a comércio com uma entrada lateral com a escada de acesso ao piso superior. No prédio em questão, a escada terminava num
amplo salão com as janelas abrindo-se para a rua à esquerda e à direita uma série
de portas para os demais cômodos. Assim que pisei no salão fui recepcionada por
uma estrondosa vaia dos foliões que só pararam com a gritaria quando uma porta
se abriu e uma pessoa aos berros disse que eu era jornalista e ia
entrevistá-lo. Artistas, políticos e atletas costumam amargar vaias em suas
carreiras, mas jornalistas.? A pessoa era o diretor da agremiação, que me
introduziu na sala, pediu desculpas pelo comportamento dos foliões e explicou
que o “Agora vai...” se tornara um bloco gay e mulheres não eram
admitidas nos ensaios. Na saída, todos se comportaram e ainda ganhei adeusinhos
que ignorei solenemente.
De
acordo com J. Muniz, colaborador do jornal CIDADE SANTOS, a agremiação teria
surgido no antigo Café d’Oeste na Praça José Bonifácio em 1947. A partir de
1952 o bloco incluiu carros alegóricos com críticas e teve seu apogeu em 1958. Naquele
ano, estava em completa decadência. Lembro que as mulheres já desfilavam em
escolas de samba, mas eram poucas ainda em blocos e ranchos.
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