sábado, 22 de abril de 2023

VIDA DE REPÓRTER

Para quem não é do ramo, foca é todo jornalista no início da profissão. Comecei a estagiar em abril de 1970, quando ainda cursava o quarto ano da faculdade. Tudo novidade. Na redação, havia vários colegas da faculdade e alguns conhecia de vista desde os tempos do colégio Canadá, como Tomás de Aquino, que devia estar com uns 23 anos e já se destacava no jornalismo.  Na época, havia uma pedreira no bairro do Marapé que causava grandes transtornos para a vizinhança e, vira e mexe, os moradores iam até o jornal reclamar, pedindo que as autoridades tomassem providências contra a empresa extratora de pedras. 

Foi por isso que a secretaria de saúde informou ao jornal que em tal dia faria uma operação surpresa e eventual interdição da pedreira caso a empresa estivesse infringindo a lei. Não sei o motivo que levou a chefia a escalar uma foca para cobrir o evento. Talvez os experientes estivessem ocupados com coisas muito mais importantes. O fato é que me deram todas as orientações possíveis e avisaram que, eu e o fotógrafo, só deveríamos aparecer quando a fiscalização chegasse. Em outras palavras: deveríamos ficar na moita até a hora H. Fomos cedinho para o local e abandonados nas imediações da pedreira. E assim passaram-se os minutos e as horas, e a manhã chegou ao fim sem que ninguém da Secretaria de Saúde se materializasse. Na pedreira, o trabalho seguia o ritmo, como pudemos constatar a cada explosão, seguida de nuvens de poeira. Meu horário de trabalho era de 8 às 13 horas. O repórter fotográfico já estava irritado, queria ir embora; munida de uma ficha telefônica, fui procurar um telefone para ligar para o jornal. Atendeu Tomás de Aquino. Expliquei a situação e concluí, como boa foca, que meu horário de saída era às 13 horas. Ele era um gentleman. “Hilda, jornalista não tem hora para sair, mas se você quiser mesmo vir embora eu envio um carro e um jornalista para o local.” Uma lição inesquecível dada com toda classe.

Lembre-me dessa história porque hoje é dia de Tiradentes. Ainda cursava o colegial no colégio Canadá, quando assisti no anfiteatro do colégio a uma montagem do julgamento de Tiradentes feita pelos estudantes. Tomás de Aquino fazia o papel de advogado do inconfidente e, observando seu desempenho, imaginei que ele faria Direito. Foi uma surpresa encontrá-lo no jornal, onde já se destacava. Inteligente, bonito e elegante, dirigia um jipe descoberto. Faleceu no mesmo ano num acidente automobilístico em Guarujá.

    Por falar em pedreira... Eu já não era foca. Estava trabalhando um sábado à noite cobrindo folga ou férias de algum colega. A reportagem geral é bem abrangente, pode até incluir um show, normalmente atribuição do pessoal de Variedades, ou um crime, setor da equipe de polícia. Naquele sábado, entre várias outras coisas, eu tinha que ir conferir uma assembleia do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Santos, cuja sede era na Vila Mathias, numa região repleta de hotéis de “curta permanência”, botecos e casas, por assim dizer, suspeitas, embora todo mundo soubesse o que acontecia por lá. Quanto a isso nenhum problema porque o jornal ficava nas imediações da velha “boca do lixo” de Santos. Minha missão naquela noite era conversar com o presidente da entidade sobre as reivindicações e combinar para pegar no dia seguinte o resultado assembleia e seguir com o fotógrafo para a próxima reportagem.

O sindicato funcionava num sobrado – subi as escadas, localizei o salão, abri a porta e lá estavam dezenas de trabalhadores esperando sentados que a reunião começasse. A mesa que conduziria os trabalhos ficava de frente para a porta e, ao me ver, um dos líderes gritou indignado:

– A senhora queira se retirar imediatamente! Esta é uma casa de respeito!

Todas as cabeças se viraram para ver a indigna senhora que ousara invadir o local. Suspirei fundo e respondi que eu era jornalista e estava ali por causa da assembleia. Risadas da plateia e constrangimento do presidente que tratou de se desculpar e me deu toda atenção tentando remediar a situação.

A NOITE DAS VAIAS

O jornal planejara um caderno especial sobre a história do Carnaval de Santos. Uma equipe de repórteres foi atrás dos diretores dos blocos e escolas de samba mais antigos para entrevistá-los e localizar velhos foliões para narrassem suas aventuras “momísticas”. Isso foi em meados dos anos 1970. Na minha lista, constava o “Agora vai...”, bloco que desfilava apenas uma vez por ano no sábado anterior ao Carnaval. Não gosto de Carnaval. Quando era criança, a rua em que eu morava fazia parte do trajeto dos blocos e minhas tias me levaram algumas vezes para assistir “Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?” – um desfile que acontecia na orla da praia.

Na época da entrevista o “Agora vai...” estava em decadência. O diretor da agremiação marcou a entrevista à noite, na sede da Tricanas de Coimbra, que era num sobrado no centro da cidade, onde aconteciam os ensaios. Como sempre os repórteres dividiam a viatura do jornal e nessa ocasião estávamos eu, o fotógrafo e cronista social. Na porta do sobrado, me identifiquei, mas o leão de chácara me impediu de subir; expliquei que tinha entrevista marcada com a diretoria do bloco. Ele estava irredutível. O cronista social resolveu intervir e, para minha surpresa, teve permissão para entrar. Furiosa, aguardei o retorno dele e fui autorizada a subir. Como a maioria dos sobrados, o térreo é um espaço destinado a comércio com uma entrada lateral com a escada de acesso ao piso superior.  No prédio em questão, a escada terminava num amplo salão com as janelas abrindo-se para a rua à esquerda e à direita uma série de portas para os demais cômodos. Assim que pisei no salão fui recepcionada por uma estrondosa vaia dos foliões que só pararam com a gritaria quando uma porta se abriu e uma pessoa aos berros disse que eu era jornalista e ia entrevistá-lo. Artistas, políticos e atletas costumam amargar vaias em suas carreiras, mas jornalistas.? A pessoa era o diretor da agremiação, que me introduziu na sala, pediu desculpas pelo comportamento dos foliões e explicou que o “Agora vai...” se tornara um bloco gay e mulheres não eram admitidas nos ensaios. Na saída, todos se comportaram e ainda ganhei adeusinhos que ignorei solenemente.

De acordo com J. Muniz, colaborador do jornal CIDADE SANTOS, a agremiação teria surgido no antigo Café d’Oeste na Praça José Bonifácio em 1947. A partir de 1952 o bloco incluiu carros alegóricos com críticas e teve seu apogeu em 1958. Naquele ano, estava em completa decadência. Lembro que as mulheres já desfilavam em escolas de samba, mas eram poucas ainda em blocos e ranchos.

"Baco", tela de Caravaggio, 1596.


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