sábado, 28 de outubro de 2023

A DISCRETA TABACARIA

A cadeira ao lado da escultura de Fernando Pessoa, no Chiado, raramente está vazia. Todas as pessoas que posam ao lado do poeta têm como cenário ou pano de fundo a Casa Havaneza, a mais antiga tabacaria portuguesa cuja fundação é atribuída a dois belgas, François Caen e Charles Vanderin, por volta de 1864 – época em que a Rua Garret ainda se chamava rua das Portas de Santa Catarina. A casa tornou-se conhecida pela qualidade de seus produtos e atraía intelectuais, políticos e aristocratas; continua um ponto de referência para os amantes de bons charutos e têm dinheiro para queimar. Foi esse detalhe na foto que me lembrou a “Tabacaria”, o belíssimo poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. A escultura é do português Lagoa Henriques (1923-2009).





TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

(...).

Há sempre alguém chegando para um momento com Pessoa...Ou Álvaro de Campos.


3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei principalmente a legenda

Nilton Tuna disse...

Estou adorando seu relatos das andanças lusas! Preciso ouvir outros presencialmente. Beijos.

Hilda Araújo disse...

Bom dia! Obrigada pelos comentários, amigos. Nilton, vamos marcar um papo amigo. Beijos.