domingo, 14 de abril de 2024

ERA UMA VEZ ZÉLIA MARIA

 

Achei uma matéria que fiz para o JORNAL DA USP em fevereiro de 1992 sobre o retorno da ex-ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello à vida acadêmica na Universidade de São Paulo, logo após deixar o governo Collor. Aqui vai a transcrição de parte da reportagem que acabou gerando muito descontentamento do Conselho Universitário por causa da publicação da charge feita pelo tesoureiro do Centro acadêmico, na época. Para achar o motivo é preciso olhar com muita atenção os detalhes.

Zélia vem aí. E já está na mira dos alunos.

Zélia Cardoso de Mello reassume no dia 24, como professora MS3 de Economia Brasileira Contemporânea. O Centro Acadêmico da FEA vai recepcioná-la, vestindo os calouros com camisetas em que aparece a charge da ex-ministra ao lado dos colegas Sayad, Delfim, Pastore e Macedo. Por Hilda Prado.

Um pouco antes das 9h30 da manhã do dia 24 próximo – uma segunda-feira que ninguém sabe se será ensolarada ou não – uma professora elegante e com uma aparência austera deve tentar entrar no prédio da Faculdade de Economia e Administração (FEA) de forma discreta, como sempre fez. Pode ser que consiga, como todos os seus pares; porém, muito provavelmente, terá que ultrapassar uma barreira de câmaras de tevê, fotógrafos e jornalistas muito interessados em saber como ela vai conciliar a volta ao magistério e sua vida familiar. Imprensa e perguntas indiscretas não a assustam, ela tira de letra, porque fizeram parte do seu cotidiano.

Neste caso, toda essa curiosidade é natural, porque, afinal, queiram ou não, a professora Zélia Maria Cardoso de Mello é notícia. Entre os alunos, nenhum frisson especial, pois estão acostumados a encontrar pelos corredores e a conviver com alguns dos principais monstros sagrados da economia brasileira: João Sayad, Affonso Celso Pastore, Andrea Calabi, Roberto Macedo, Paul Singer e Delfim Netto (que este ano dá a aula magna da FEA).

            Aliás, a última aula que Zélia deu foi exatamente a aula magna da FEA, no Anfiteatro das Convenções, três dias antes de assumir o Ministério da Economia do governo Collor e anunciar um plano tão heterodoxo que deixou o país literalmente aparvalhado. Agora, retorna para dar aula de Economia Brasileira Contemporânea para os alunos do 7º semestre do período diurno. Um detalhe interessante: a maioria dos alunos desta turma já teve esta matéria no semestre passado, mas Zélia não corre o risco de enfrentar uma classe quase vazia, já que muitos estudantes do 6º semestre vão antecipar seus créditos frequentando esta aula.

0 TOQUE DOS ALUNOS – Zélia Cardoso de Mello não foi a primeira mulher a ocupar um ministério, mas certamente foi a mulher que concentrou mais poder no país em todos os tempos. A ex-ministra, a ex-dama de ferro ou ex-Tatcher brasileira polarizou a mídia nacional por quase 13 meses, mas tudo terminou numa sexta-feira (5 de maio de 1991). Quando saiu do governo, Zélia disse que saía magoada, mas estava feliz e lembrou que “a vida dá muitas voltas”. Os problemas da vida privada acabaram se tornando públicos e a ex-ministra lançou um livro, redigido por Fernando Sabino, que lhe rendeu mais críticas do que os 13 meses de governo juntos.

            A professora Zélia (que não respondeu ao pedido de entrevista solicitada pelo Jornal da USP) volta à vida acadêmica. Se fosse ministra estaria ganhando algo em torno de Cr$ 5milhões; como docente MS3 receberá Cr$1.508.380,00 (salário de fevereiro). Por enquanto ela não tem sala (o secretário de Planejamento, Roberto Macedo, ainda mantém a sua) e deverá usar a dos professores. Zélia não veio à USP para regularizar sua volta nem para escolher seu horário, o que foi feito por sua secretária particular.

Embora tudo transcorra rotineiramente lá pela FEA, há uma certa expectativa no ar. No balcão do Serviço de Graduação, funcionários atrapalhados com o acúmulo de trabalho, ouvem frequentemente a pergunta de alunos interessados em saber se “é verdade que a Zélia está voltando”. A confirmação está no quadro, que fica no corredor. Bastava dar uma olhadinha, mas parece que alguns não acreditam. Fazem questão de perguntar.

            Os alunos do Centro Acadêmico “Visconde de Cairu”, que não perdem a chance de fazer “artes”, criaram uma camiseta que vão distribuir entre os calouros, com uma charge em que  Sayad, Delfim, Zélia, Pastore e Macedo aparecem no melhor estilo de bicho, no traço de Giorgio Caputo, tesoureiro do Centro. Como os calouros não terão aulas de Economia Brasileira Contemporânea, Zélia dificilmente se confrontará com a sua caricatura usando “maria Chiquinha” na classe.


Zélia entre Sayad, Delfim, Pastore e Macedo. Reprodução JUSP.