O MANJAR PROIBIDO
Já imaginou um
manjar branco tão delicioso a ponto de um rei proibir que se divulgasse a
receita? Conto de fada? Não. O fato verdadeiro aconteceu em Portugal em pleno
século XVI. D. Sebastião, “considerando-o suntuoso e acima da economia fidalga
e popular”, proibiu-o através de uma pragmática (qualquer
lei diferente do direito) em 28 de abril de 1570.
Deveria ser a
delícia das delícias e fiquei muito tempo tentando descobrir a receita desse doce
e até tentada a ir para a cozinha materializar essa maravilha e ter a
felicidade de provar tal iguaria. Encontrei, finalmente, a receita na obra de
mestre Luis da Câmara Cascudo, que o coloca entre os quatro doces históricos na
etnografia lusitana.
Mas como diz
o poeta santista a “felicidade sempre está onde a pomos e nunca a pomos onde
nós estamos”. A verdade é que logo no inicio da receita, a magia da história se
evaporara no cozimento da galinha, ingrediente principal do manjar. Doce que
leva galinha? Nem pensar! Confesso que não gosto muito de galinha, mas li até o
fim e descobri que prefiro o doce à moda do Porto, onde o pessoal substitui a
galinha por amêndoas. A outra opção (para os dias em que não se comia carne) é
trocar a penosa por peixe.
A proibição real, entretanto, não
impediu que o manjar branco se tornasse doce dos conventos ricos e chegasse ao
Brasil por meio dos religiosos, já que o padre Cristóvão de Gouvêa o provou em 1583 na Bahia.
Se alguém estiver interessado em fazer o manjar branco, aí
vai a receita que está na obra de Cascudo, transcrita do livro O doce nunca amargou, de Emanuel
Ribeiro, publicado em Coimbra em 1928. Nos dias atuais o manjar
branco é até acessível ao bolso popular.
“Coze-se uma galinha e, depois de bem cozida, tira-se para um prato onde
se deixa arrefecer; estando fria extrai-se-lhe toda a carne do peito sem a
pele, e esta carne desfia-se a mão o mais completamente possível.
Feito
isso, em um tacho bem limpo deita-se um litro de leite e no leite, a carne
desfiada da galinha. Mexe-se bem para a mistura ficar perfeita e, depois,
reúne-se-lhe um quilo de açúcar refinado e 320 gramas de farinha de arroz.
Mexe-se
bem e leva-se ao lume onde se põe a cozer. Enquanto vai cozendo, deita-se no
tacho, pouco a pouco, um litro de leite, onde se dissolveu meio quilo de açúcar
refinado.
Assim
que tudo estiver cozido, o que se conhece quando, metendo no preparado a ponta
da faca, esta despegar lisa, deita-se-lhe uma pouca de água-flor, dá-se-lhe uma
mexedela, e tira-se do fogo, deitando-se o doce em pequenos pires ou em uma
travessa grande, para, depois de frio, se cortar em pedaços.”
O manjar branco deu origem ao manjar real, o sucesso
do século XVIII, e que é um pouco mais complicado de fazer. Recomendo também o
uso de um dicionário para entender as recomendações do cozinheiro português e
evitar que tudo desande enquanto se traduz a receita.
“Depene-se
uma galinha em água quente, limpe-se, e lave-se, e ponha-se a cozer em água com
pouco sal. Em estando quase cozida, passe-se o caldo pelo peneiro, tire-se-lhe
a gordura, deitem-lhe de molho o miolo de dois vinténs de pão; em estando bem
ensopado, esprema-se por um pano lavado, deite-se em um grol em que esteja já
um arrátel (459 g) de amêndoas doces bem pisadas, e pisando tudo outra vez,
passe-se depois pelo peneiro, desfiando-lhe o peito da galinha; deite-se depois
tudo em quatro arráteis de açúcar em ponto de espadana, chegue-se a lume
brando, e mexendo-se sempre com uma colher, até se incorporar em consistência
conveniente, deite-se em pratos, ou em covilhetes e sirva-se neles quando
parecer.”
(Publicado no site
anterior em janeiro de 2010.)
Castelo de Villandry, Tours, França, 23 de maio, 2012. Foto: HPPA. |
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