O PENSADOR
Há tempo para tudo, diz um
antigo livro. Agora estávamos em tempo de pensar. Para quem não está
acostumado, pensar significa “submeter (algo) ao processo de raciocínio lógico; ter atividade psíquica consciente e organizada; exercer a capacidade de julgamento, dedução ou concepção; refletir sobre, ponderar, pesar” (Dicionário Houaiss).
E nesses tempos em que vivemos, vale a pena refletir sobre o
“Sermão do bom ladrão” proferido pelo padre Antônio Vieira (1608-1697) na Igreja
da Misericórdia de Lisboa há 362 anos, na presença de D. João IV, ministros e cortesãos.
Vieira é um dos grandes mestres da língua portuguesa; dono de um estilo
rebuscado, ele foi um brilhante pregador. Segue um excerto do sermão:
“SERMÃO DO BOM LADRÃO”
(...) O que eu posso acrescentar
pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas
também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por
todos os modos o verbo rapio, porque
furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não
conheceu Donato nem Despautério.
Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo
indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes
apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo
imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às
execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes
mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo
modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas
aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque
ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua
graça, para serem, quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, e, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo
modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo,
e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos
modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as
segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e
consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente – que é o seu tempo – colhem quanto dá de si o
triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram
crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que pagam inteiramente, e do futuro empenham as
rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a
cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os
imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam,
furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de
furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante
conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando
eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado
toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam
carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.(...)
Para ler o texto integral:
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