Santos, 15 de setembro de 1987/2017.
OBITUÁRIO DE UM JORNAL
Sempre que um jornal encerra suas atividades quem perde mais são os
cidadãos – muito mais que os funcionários – porque os jornais são
indispensáveis para a circulação de informação na sociedade. Há 30 anos, depois
de fazer parte da vida da Baixada Santista por 20 anos, circulava pela última
vez o jornal CIDADE DE SANTOS,
propriedade do grupo FOLHA DA MANHÃ.
Um discreto anúncio na primeira página informava aos leitores a decisão
do grupo FOLHA:
“Com a edição de hoje CIDADE DE SANTOS interrompe sua circulação. Os
assinantes recebem com este exemplar uma carta pessoal sobre o ressarcimento do
valor do saldo de sua assinatura. CIDADE DE SANTOS agradece aos seus leitores e
anunciantes a atenção que sempre lhe foi dispensada. Aos nossos funcionários, o
nosso agradecimento e a certeza de que todos os seus direitos trabalhistas
serão inteiramente atendidos. A Direção.”
A reportagem de última página tinha um título ambíguo: “Esta cidade está
abandonada. É o fim.”
A decisão causou a dispensa de 120 funcionários entre os quais 64
jornalistas. O dia 14 de setembro foi bem estranho. Com um gosto amargo. Todos
sabiam que preparavam a última edição do jornal e que o ponto final colocado na
matéria tinha um significado mais profundo. Depois dele só haveria o silêncio
das máquinas de escrever, das prensas, dos carros de distribuição e, sim, até
do leitor que não teria mais como dar sua opinião (boa ou má) sobre o que lia.
O
dia 15 parecia normal. Todos compareceram como se fosse mais um dia de trabalho
como tantos outros; contudo entre uma lágrima e outra, um sorriso tristonho,
restava apenas esvaziar gavetas, reler recortes... Alguns desceram para o
Alvorada, outros para o Paulista chorar as mágoas e tomar cerveja mais cedo. O
que fazer? Sim, o que fazer? Uns poucos tinham 20 anos de casa, outros eram
novatos e a maioria percorrera boa parte da história do jornal. Aquele foi um
dia dedicado às recordações do que se havia feito e às avaliações sobre como o
jornal contribuíra para a cidade. O vazio que deixaria...
Evidentemente, havia todo um lado sentimental construído no cotidiano da
redação, das viaturas ou das reportagens. Construiu-se um folclore em torno de
algumas pessoas e de lugares específicos da sobreloja do número 26 da Rua do
Comércio, onde pontificou a Praça da Paz Universal – que em algumas ocasiões
lembrava mais Berlim em 1945, mas em vez de bombas choviam caralhos – que me
perdoem os mais sensíveis.
O arquivo, único local do jornal aberto ao público, era especial. Ali
reinava Eduardo Leite e uma turma da pesada – Erasmo Luna, Marcílio Araújo e
Júlio César. Eduardo tinha um dom especial – paciência num ambiente em que o
estresse era o padrão. Havia pelo menos dois motivos que, em geral, levavam os
jornalistas até lá: pesquisa e um papo com Edu. Apreciador de música erudita e
bom cinema, dono de um humor refinado, ele tinha uma rotina que incluía a
leitura de uns oito jornais, selecionava o material para o uso da redação e
escrevia uma coluna de efemérides. O atendimento dos jornalistas e do público
era feito pelos arquivistas. Era também no arquivo que o pessoal ia resolver
seus problemas, acertar as diferenças e até namorar. Edu tudo via e nada via.
Eduardo Leite foi um dos “pais fundadores”.
Mais adiante estava o Departamento Fotográfico – nome pomposo para um
reduto estritamente masculino em que reinou por muitos anos Francisco Rubio
PACO com seu inseparável charuto; mais tarde assumiu o pupilo Itamar Miranda,
outra lenda do jornalismo fotográfico de Santos. No final do corredor,
abriam-se as portas para a Redação com o “Aquário” dominando o salão, que
também dava guarida à Secretaria
O jornal CIDADE DE SANTOS era democrático no sentido
verdadeiro da palavra. Ali estavam representadas todas as tendências políticas,
esportivas e religiosas, que conviveram sem rancores. Antônio Ággio Jr., em seu
depoimento para Rubens Fortes ERRE há cinco anos, lembra que “Nunca pedimos atestado ideológico a ninguém.
Nenhum colega jamais precisou dar explicação de atos e pensamentos pessoais,
embora Santos fosse centro político-ideológico nevrálgico aos olhos da
Revolução. Aliás, a militância de vários deles era notória, mas nada tinha a
ver com suas obrigações profissionais, cumpridas religiosamente. Nenhum foi
preso ou coagido por quem quer que seja, pelo menos enquanto Freddi e eu
dirigimos o jornal, mesmo sob a plena vigência do famigerado Ato Institucional
(AI-5) de triste memória”.
E que eu
saiba em nenhuma ocasião as convicções ideológicas pessoais foram postas em
questão. Costuma-se dizer que éramos uma família, mas que ninguém se iluda.
Como em toda família houve brigas e desentendimentos; mágoas e ressentimentos,
mas no frigir dos ovos havia um consenso sobre a importância da informação e do
leitor porque a notícia estava acima de tudo.
Enquanto em muitas empresas a cúpula incentiva atividades sociais para
melhorar o relacionamento dos funcionários, na Rua do Comércio, as pessoas se
encarregavam de organizar festas, viagens e passeios embora o esporte preferido
fosse a derrubada de garrafas de cerveja pela cidade. Elaine Saboya criou um
clube do livro e nos apresentou ao Clube de Cinema de São Vicente.
Da minha parte lembro-me de quatro históricas viagens ao Rio de Janeiro –
uma das quais começou com um acidente de carro na Via Dutra que não impediu o
trio a bordo de prosseguir para a Cidade Maravilhosa e terminar com muitas
histórias para relembrar, não é, Zé? Havia as festas de aniversário do jornal
(uma delas teve algumas cadeiradas) e de fim de ano. Houve uma época em que São
João foi incluído no calendário, mas não vingou talvez por causa do vocabulário
pouco convencional de alguns participantes.
Não faltaram paixões, romances, casamentos e até algumas separações. Ao
todo foram cerca de catorze casamentos.
Como diz o poeta “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. (Fernando
Pessoa)
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