terça-feira, 25 de julho de 2023

O HOMEM INVISÍVEL

 


A cena urbana de uma vila na Idade Média é uma pequena mostra de que usos e costumes pouco mudam com o passar do tempo, apesar das inovações que surgem e vão sendo incorporadas pela sociedade. Outono ou primavera, quem sabe? Faz sol. Vê-se pelas sombras, mas pela nesga de céu observam-se nuvens atrás do prédio que ocupa o centro da pintura. O arauto a cavalo lê os proclamas para uma pequena plateia atenta, mas atrás dele a rua fervilha de gente. Um homem carrega suas mercadorias e observa com interesse a chegada de uma família – pai, mãe e filho – e talvez anteveja bons negócios. Do lado direito destaca-se o aguadeiro que também observa os recém-chegados. Gente importante? Quem sabe? Indiferente ao que acontece no entorno, uma mulher escolhe os alimentos acomodados nos cestos presos ao lombo do burrico, enquanto a verdureira se esforça para agradar. Do prédio à direita, onde há uma mulher na sacada, sai uma jovem atenta à vendedora. Pela mão leva a criança animada com o passeio. Três damas escolhem tecidos dispostos no parapeito de uma janela que funciona como vitrine, enquanto na casa ao fundo outras três conversam e fazem compras. No prédio do centro, nos terraços fechados com treliça, duas mulheres observam o movimento na praça. Abaixo da sacada, próximo da porta, o mendigo com uma perna de pau observa o movimento e atrás dele um porco e algumas galinhas se alimentam sob o olhar curioso de um vira-lata. Ainda há mais três ou quatro pessoas proseando sob a sacada.

O surpreendente na cena é a invisibilidade do ladrão falsificador preso ao pelourinho bem no centro da praça.

Hoje nas ruas temos os vendedores ambulantes; o burrico foi substituído por carros/ caminhonetes com som insuportável; homens e mulheres fazem compras com pressa, a prosa persiste, mas ameaçada cada vez mais pelos celulares. As janelas perderam o encanto, substituídas pela TV. Quanto ao arauto foi substituído pelos pregadores religiosos, por pessoas contratadas para ficar à porta de estabelecimentos comerciais com megafones atraindo fregueses em potencial...  O pelourinho sumiu, mas os invisíveis continuam ao nosso redor.

Encontrei a gravura sem crédito num texto antigo sobre Lisboa do século XIV, nem sei se a ilustração é da mesma época, mas me chamou atenção.

“Cena da vida quotidiana de uma cidade medieval, Fernão Lopes dá-nos uma descrição muito vívida da cidade de Lisboa no século XIV até 1369: ‘Esta cidade é uma grande estação das mais desvairadas gentes, assim locais como estrangeiros (...) Aragoneses, Franceses, Genoveses e Prazentins (de Piacenza, na Itália), Milaneses, Venezianos. Assim de Ingreses, da Flandres, da Dinamarca e da Livónia (Báltico), (...) assaz uma cidade muito bela, à beira do rio onde toda a indústria se pode encontrar’.” Crónica do rei D. Fernando, capítulo 16.

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