Só para dar água na boca, um trecho de "Grande Sertão: Veredas", do escritor
e diplomata João Guimaraes Rosa, que hoje faria 116 anos – ele nasceu em 1908,
na cidade de Cordisburgo (MG).
“Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa
igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu,
amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os
mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não
se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se
disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela
tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
Maria
Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si,
se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra,
entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota
foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo
santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola se
dizia só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os
costumes, mulher que não ria esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava
os olhos do padre.
O
padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo,
muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por
verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com
uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e
também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas
não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação com a ignorância dos
tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os
filhos, bem-criados e bonitinhos, eram "os meninos da Maria do
Padre". E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão cheia,
cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu sermão e atendendo em
qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa
hóstia do Senhor ou dos santos-óleos.”
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