O CENTENÁRIO DA VILA ZÉLIA
São
Paulo, no início do século XX, não era um mar de rosas tanto para os
industriais quanto para os trabalhadores. Os primeiros porque viam seus lucros
ameaçados pela própria falta de responsabilidade social e os segundos porque enfrentavam
jornadas de trabalho de 12 horas ou mais, péssimas condições de trabalho e
baixos salários, que impediam o acesso de trabalhadores a moradias dignas. As greves, tratadas
como caso de polícia por patrões e autoridades, começaram a se multiplicar.
Nesse
cenário, destaca-se o carioca Jorge Street (1863-1939). Como médico Jorge
Street costumava não cobrar dos pobres porque não podiam pagá-lo nem dos ricos
porque eram seus amigos. Quando herdou do pai as ações da tecelagem de juta
“São João”, trocou o estetoscópio pelos teares e logo depois (1904) também
mudava do Rio porque percebeu que era em São Paulo que se encontravam as
melhores oportunidades para os negócios: São Paulo era o principal produtor de
café e a juta, o material utilizado na confecção de sacaria (até hoje). Nesse
ano, ampliou os negócios, comprando do conde Álvares Penteado a tecelagem de
juta “Santana” no Brás, por 13 mil contos de réis. Os resultados não poderiam
ser melhores e quatro anos depois fechou a fábrica do Rio, transferindo o
equipamento para São Paulo, onde investiu também em uma tecelagem de algodão e
de uma fábrica no bairro do Belenzinho.
Jorge
Street tornou-se um dos mais importantes industriais do Brasil e se destacou
também ao defender a criação dos sindicatos: “À medida que os sindicatos se
tornam mais fortes e mais ricos vão compreendendo que podem tratar
pacificamente com os capitalistas as condições de trabalho assalariado, sem
socorrer-se do recurso extremo da greve. [...] longe de nos opormos a essa
marcha, devemos colaborar e facilitar o progresso.” Uma visão romântica da
questão, mas fundamental na época. Durante a greve de 1917 reconheceu a União
dos Operários em Fábricas de Tecido para horror dos patrões.
O
fato é que Street preocupava-se com a situação dos trabalhadores. Diariamente,
percorria as fábricas. Muitas vezes visitava trabalhadores em casa e o que via
nessas ocasiões o desolava. Decidiu então construir a Vila Maria Zélia, no
Belém. O prof. Jacques Marcovitch (FEA/USP) afirma que “nenhuma vila operária
(brasileira) pode se comparar à Maria Zélia na qualidade do projeto
arquitetônico das casas e dos prédios de uso comum”.
O
arquiteto francês Paul Pedraurrieux, contratado por Street, criou uma
pequena cidade de padrão europeu do início do século passado. Com seis ruas
principais e duas transversais que se estendiam num terreno murado até o rio
Tietê, na vila foram construídas 198 casas térreas, pintadas de amarelo. Como
Street queria: “Morada sã, com bastante sol e luz, e os cômodos de acordo com
as necessidades das famílias operárias comuns”. As portas e janelas eram
de madeira maciça - pintadas de cor marrom. O assoalho era de pinho de riga. As
moradias menores tinham um quarto, sala, cozinha e banheiro (74,75m²) e as
maiores dispunham de três ou quatro quartos (110,40 m²). O aluguel
variava entre 20$000 e 30$000 mil réis.
Se
precisassem ir ao centro de São Paulo, bastava tomar o bonde Vila Maria – Largo
da Concórdia; porém, os moradores dispunham de vários serviços na própria vila:
creche, jardim da infância, duas escolas (a dos meninos e das meninas),
consultórios médicos e odontológicos, farmácia, armazém, açougue e restaurante;
mais igreja, teatro, salão de baile, quadras esportivas e um campo de futebol.
A creche gratuita possuía seis dormitórios com capacidade para 15 leitos cada
um. Cada salão, que era cuidado por duas funcionárias, tinha dois pequenos
banheiros com água quente e fria.
Em
2015, visitei a Vila Maria Zélia ou o que restou dela. Na Rua dos
Prazeres só há tristeza pelo descaso com que é tratado nosso patrimônio
histórico. Quando conseguiram o tombamento da vila, ela praticamente perdera as
características originais. A área encolheu. A creche desapareceu, cedendo
espaço para outros empreendimentos. Os prédios principais estão caindo aos pedaços
e, como pertencem ao INSS, é questão de tempo que se desfaçam em poeira. Apenas
a Igreja mantém-se, aparentemente, em boas condições. Na praça acolhedora, uma
antiga moradora descansa com seu cão. Ela estudou na escola das meninas, mais
tarde casou e deixou a vila para onde voltou há cerca de 40 anos, quando o
lugar já estava deteriorado pela incúria geral. Ela também lamenta o que
aconteceu com lugar. Dizem que produtores de novelas e filmes têm usado o
espaço para cenário de suas histórias de época. Difícil imaginar como conseguem
porque eu só vi as ruínas de um legado.
(Maria
Zélia era o nome da filha de Street, que morreu muito jovem. O destino da Vila:
em 1924 foi vendida para a família Scarpa e passou a se chamar Vila Scarpa; em
1929 por causa de dívida passou para o grupo Guinle que lhe devolveu o nome
antigo; em 1931, a fábrica foi desativada e a vila, que era particular, passou
para o governo federal, que a usou como presídio durante o Estado Novo. Fotos: Hilda Araújo. )
Publicado
originalmente em 11 de agosto de 2015.
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