Quem
aprecia castelos medievais e suspira por cavaleiros andantes e trovadores, talvez
ignore que esse foi um dos períodos mais difíceis da Europa, quando a pobreza
social e a pobreza biológica coexistiram entre os séculos XIV e XVII. Assim, milhares
de pessoas sem acesso às oportunidades disponíveis, que eram poucas, e sem
abrigo e alimento, elas se reinventavam para sobreviver. Como? Estabelecendo-se
à margem da sociedade que à época valorizava o trabalho acima de tudo (São
Paulo: “quem não trabalhar não deve comer” – Epístolas aos Tessalonicenses) e dependendo de
caridade da Igreja e pública. Os mendigos eram divididos em duas categorias –
os incapazes para o trabalho, que recebiam ajuda, e os sãos de corpo, considerados
vagabundos e, portanto, iam para a prisão ou eram expulsos das cidades, que
consideravam a mendicância um crime. Muitas vezes condenados à morte em caso de
reincidência. Logo, entretanto, menestréis, frades, eremitas, peregrinos,
insanos e estudantes em trânsito tinham que apresentar documentos às
autoridades, correndo o risco de serem considerados mendigos e sofrer as
consequências.
A miserabilidade cresceu tanto que milhares
de mendigos acabaram caindo na marginalidade, se especializando em golpes,
organizando quadrilhas, criando sua própria linguagem, enfim, ingressando na criminalidade.
O historiador polonês Bronislaw Geremek escreveu um livro sobre o tema, com
base em uma pesquisa que abrange documentos, folhetos e a literatura da época,
para nos mostrar um pouco do que ocorreu na Europa medieval. A obra – “Os
Filhos de Caim: Vagabundos e Miseráveis na Literatura Europeia de 1400-1700” – é,
na verdade, um tratado sobre o tema. É importante ressaltar que, embora a
maioria dos textos citados não seja oficial, a realidade não deve ser muito
melhor, já que a literatura costuma retratar sua época, como o próprio autor
alerta. Geremek lembra o fato de que os autores, provavelmente, basearam muitas
histórias na tradição oral, o que sempre nos leva a supor que “quem conta um
conto, aumenta um ponto”.
Uma das principais obras citadas é o
Liber Vagatorum (Livro dos Vaganundos, autor alemão anônimo), de caráter didático religioso: “com
seu discurso meticuloso e um olhar abrangente constitui uma espécie de itinerário
dantesco que oferece um quadro vasto e minucioso dos espetáculos que os
mendigos, usando a palavra e a mímica, apresentavam nas ruas, estradas e praças
dos dias de semana e nos feriados”. Martinho Lutero, que fora vítima de fraudes
várias vezes, prefaciou a edição de 1528 em que pregou uma nova política social.
Infelizmente, a miséria não desapareceu
com o passar do tempo. O problema social continua em pleno século XXI e se
agrava, mas o olhar do homem comum ainda é mais de crítica do que de
solidariedade. O surpreendente no livro é a constatação de que muitos dos
truques e golpes que a imprensa registra nos dias atuais, – praticados por
aqueles que perderam a esperança –, já eram usados naquela época. A maquiagem
para simular doenças ou ferimentos; o uso de crianças para amolecer o coração
das pessoas; a organização de bandos para a exploração dos seus companheiros de
infortúnio...
Em agosto de 1667, conta Geremek, “teve
lugar um acontecimento que foi decerto uma das causas de suas sucessivas
iniciativas: durante a festa da Assunção os vagamundos provocaram pânico na
catedral de Notre-Dame e em seguida aproveitando a confusão, perpetraram um
roubo em massa”. Arrastão? Ninguém escapava de fraudes.
Se na literatura, os desvalidos
estão nas obras do inglês William Shakespeare (1554-1616), do espanhol Miguel
de Cervantes (1547-1616), do escocês Walter Scott (1771-1832) e do francês Victor
Hugo (1802-1885) – citando apenas alguns; o cinema também os inclui. Clássico é
Carlitos, de Charles Chaplin (1889-1977), sem contar “O incrível exército de
Brancaleone” (1966), de Mario Monicelli, e “O feitiço de Áquila”(1985),
dirigido por Richard Donner.
Foto: Thomas
Anselm – Germanisches Nationalmuseum Nürnberg. Wikipedia.
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