sábado, 12 de novembro de 2022

OS POBRES

Quem aprecia castelos medievais e suspira por cavaleiros andantes e trovadores, talvez ignore que esse foi um dos períodos mais difíceis da Europa, quando a pobreza social e a pobreza biológica coexistiram entre os séculos XIV e XVII. Assim, milhares de pessoas sem acesso às oportunidades disponíveis, que eram poucas, e sem abrigo e alimento, elas se reinventavam para sobreviver. Como? Estabelecendo-se à margem da sociedade que à época valorizava o trabalho acima de tudo (São Paulo: “quem não trabalhar não deve comer” – Epístolas aos Tessalonicenses) e dependendo de caridade da Igreja e pública. Os mendigos eram divididos em duas categorias – os incapazes para o trabalho, que recebiam ajuda, e os sãos de corpo, considerados vagabundos e, portanto, iam para a prisão ou eram expulsos das cidades, que consideravam a mendicância um crime. Muitas vezes condenados à morte em caso de reincidência. Logo, entretanto, menestréis, frades, eremitas, peregrinos, insanos e estudantes em trânsito tinham que apresentar documentos às autoridades, correndo o risco de serem considerados mendigos e sofrer as consequências.

            A miserabilidade cresceu tanto que milhares de mendigos acabaram caindo na marginalidade, se especializando em golpes, organizando quadrilhas, criando sua própria linguagem, enfim, ingressando na criminalidade. O historiador polonês Bronislaw Geremek escreveu um livro sobre o tema, com base em uma pesquisa que abrange documentos, folhetos e a literatura da época, para nos mostrar um pouco do que ocorreu na Europa medieval. A obra – “Os Filhos de Caim: Vagabundos e Miseráveis na Literatura Europeia de 1400-1700” – é, na verdade, um tratado sobre o tema. É importante ressaltar que, embora a maioria dos textos citados não seja oficial, a realidade não deve ser muito melhor, já que a literatura costuma retratar sua época, como o próprio autor alerta. Geremek lembra o fato de que os autores, provavelmente, basearam muitas histórias na tradição oral, o que sempre nos leva a supor que “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

            Uma das principais obras citadas é o Liber Vagatorum (Livro dos Vaganundos, autor alemão anônimo), de caráter didático religioso: “com seu discurso meticuloso e um olhar abrangente constitui uma espécie de itinerário dantesco que oferece um quadro vasto e minucioso dos espetáculos que os mendigos, usando a palavra e a mímica, apresentavam nas ruas, estradas e praças dos dias de semana e nos feriados”. Martinho Lutero, que fora vítima de fraudes várias vezes, prefaciou a edição de 1528 em que pregou uma nova política social.

            Infelizmente, a miséria não desapareceu com o passar do tempo. O problema social continua em pleno século XXI e se agrava, mas o olhar do homem comum ainda é mais de crítica do que de solidariedade. O surpreendente no livro é a constatação de que muitos dos truques e golpes que a imprensa registra nos dias atuais, – praticados por aqueles que perderam a esperança –, já eram usados naquela época. A maquiagem para simular doenças ou ferimentos; o uso de crianças para amolecer o coração das pessoas; a organização de bandos para a exploração dos seus companheiros de infortúnio...

            Em agosto de 1667, conta Geremek, “teve lugar um acontecimento que foi decerto uma das causas de suas sucessivas iniciativas: durante a festa da Assunção os vagamundos provocaram pânico na catedral de Notre-Dame e em seguida aproveitando a confusão, perpetraram um roubo em massa”. Arrastão? Ninguém escapava de fraudes.

            Se na literatura, os desvalidos estão nas obras do inglês William Shakespeare (1554-1616), do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), do escocês Walter Scott (1771-1832) e do francês Victor Hugo (1802-1885) – citando apenas alguns; o cinema também os inclui. Clássico é Carlitos, de Charles Chaplin (1889-1977), sem contar “O incrível exército de Brancaleone” (1966), de Mario Monicelli, e “O feitiço de Áquila”(1985), dirigido por Richard Donner. 


OS POBRES


Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receieis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão . . .


Olavo Bilac (1865-1918)

Foto: Thomas Anselm – Germanisches Nationalmuseum Nürnberg. Wikipedia. 

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