Como as pessoas se veem? Como elas relatam sua existência? Tanto as biografias quanto as autobiografias são gêneros literários, que não aprecio muito. Li poucas. O que têm de verdade? Não faço ideia. Há tempos publiquei textos autobiográficos de pessoas famosas, na tentativa de mostrar como elas encaram suas vidas. E aqui segue mais uma: Woody Allen.
Woody Allen conta que por pouco não nasceu. “Definitivamente, eu nasci, e coloco dessa
forma porque houve três riscos iminentes de eu não ter tido vida. O primeiro
foi quando meu pai foi um dos únicos três nadadores que fizeram o longo
percurso até a praia quando seu navio afundou. O segundo também o envolveu, mas
não de maneira tão heroica.” Seus pais já eram noivos e o casamento foi
cancelado porque ele roubou a aliança de diamantes de uma prima dela. A situação
foi remediada com intervenção do pai do larápio. “(...) Meu terceiro flerte com
a não existência veio logo após o nascimento. Pelo menos eu já havia entrado”.
A mãe era caixa de uma floricultura e ele ficava com babás – as que ela
encontrava disponíveis. Uma delas o enrolou em um cobertor explicando como
seria fácil para ela o sufocar e então colocar o cobertor com ele morto na lata
de lixo. “Por sorte a empregada pertencia àquela variedade de louca que não
leva seus planos a cabo (...)”.
“(...)
Finalmente, eu adentro o mundo. Um mundo no qual nunca me sentirei confortável,
que nunca compreenderei, nunca aprovarei ou perdoarei. Allan Stewart
Konigsberg, nascido em 1º de dezembro de1935. Na verdade, nasci no dia 30 de
novembro, bem perto da meia-noite, e meus pais empurraram a data para que eu
pudesse começar num primeiro dia. Isso me deu zero de vantagem na vida, e eu
preferia bem mais que eles tivessem me deixado uma poupança enorme. Só menciono
isso porque, numa ironia inútil, minha irmã nasceu oito anos depois exatamente
no mesmo dia.
Eu fui o sol das cinco irmãs de
minha mãe, o único varão, o queridinho dessas doces fofoqueiras que babavam
sobre mim. Nunca fiquei sem uma refeição, nem careci de roupas ou abrigo, nunca
fui acometido por nenhuma doença séria, como a pólio que assolava a cidade.
(...) Eu era saudável, popular, bem atlético, sempre o primeiro a ser escolhido
nas equipes esportivas. Jogava bola, corria e, ainda assim, acabei me tornando
nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um
misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável.
Algumas pessoas veem o copo meio vazio; outras o veem meio cheio. Eu sempre vi
o caixão meio cheio. (...) Minha mãe falava que não conseguia entender. Dizia
que eu era um garotinho doce e animado até uns cinco anos, quando mudei para um
moleque feio, azedo, chato e de ovo virado.
Mas
não há trauma na minha vida, nada de terrível que tenha ocorrido e me
transformado de um garotinho sardento sorridente vestindo calções e sempre com
uma vara de pesca em uma das mãos num lorpa cronicamente insatisfeito. Especulo
que, por volta dos cinco anos, eu tenha tomado consciência da mortalidade e
percebi, afe, que eu não pedi isso. Nunca concordei em ser finito. Se você não
se importar, quero meu dinheiro de volta.
(...) é incrível a frequência com que sou descrito como um ‘um
intelectual’. Essa é uma concepção tão tola quanto o Monstro do Lago Ness, já
que não tenho um neurônio intelectual em minha cabeça. Iletrado e
desinteressado por questões acadêmicas, eu cresci como o protótipo do palerma
que se senta diante da tv com uma cerveja na mão assistindo empolgado a uma
partida de futebol, com a pagina central da Playboy presa com fita adesiva na
parede, um bárbaro vestido de tweed, com um paletó com protetor nos cotovelos.
Eu provoco meus pais neste relato de minha vida, mas cada um deles me forneceu conhecimentos que me serviram bem, no passar das décadas. Do meu pai: quando comprar jornal de uma banca, nunca pegue o de cima. De minha mãe: a etiqueta sempre fica atrás."
(...)
O que eu mais invejo? Quem escreveu Um bonde chamado desejo. A coisa que menos invejo? Saracotear no campo." Woody Allen (1935).
Woody Allen – a Autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020.
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