sexta-feira, 23 de setembro de 2016


COZINHEIRO NACIONAL

Os programas de culinária na TV fazem sucesso porque praticamente vários canais têm um de acordo com a audiência – popular ou sofisticada. E todos impulsionam a indústria alimentícia, vendendo de forma velada ou explícita produtos culinários ou utensílios de cozinha. Na telinha, Olivier Anquier a bordo de um fusca (re)descobriu a nossa culinária tradicional, um retrato da miscigenação que resultou na cultura brasileira.
Nesse cenário nada é mais irritante do que mestres-cucas de estúdio que dizem bowl ou fouet para lá e para cá. Abaixo o pedantismo. Eu prefiro usar mesmo tigelas e batedores. É muito entediante quando tentam contar histórias sobre pratos que elaboram, esbanjando no diet ou light. Especialmente depois que se conhece a obra de Câmara Cascudo (1898-1986) ou de Gilberto Freyre (1900-1987) sobre alimentação. O folclorista e o sociólogo deitam e rolam no tema.
Feijoada, leitão pururuca, moquecas, vatapá, arroz de carreteiro, tacacá, baião de dois, sururu... Quem não provou ou pelo menos ouviu falar dessas iguarias? Mas no princípio as coisas eram bem diferentes.
O Cozinheiro Nacional foi primeiro livro a reunir pratos e quitutes elaborados apenas com bichos e frutas das matas brasileiras. A obra publicada em meados do século XIX é atribuída a Paulo Salles, que trabalhava na Editora Garnier, no Rio de Janeiro. Freyre conta que o naturalista inglês Hasting Charles Dent (1855-1909), que esteve no Brasil coletando plantas e insetos, leu o livro e se surpreendeu com a quantidade de receitas exóticas de assados e guisados de toda espécie de bicho brasileiro. A obra também assombrou o médico e etnólogo alemão Karl Von den Steinen (1855-1929), que viajou pelo Brasil.
Hoje quem se aventurasse a provar a maioria daquelas receitas teria sérios problemas com o IBAMA e ambientalistas em geral, porque quase toda a bicharada citada está sob as leis de proteção ambiental. Felizmente. O consumo da carne de alguns animais é até compreensível em uma época em que os alimentos eram escassos e a caça ainda uma alternativa para a sobrevivência.  
Cascudo relaciona e comenta algumas receitas publicadas no livro e entre elas destacam-se: macaco cozido com bananas; irara, onça e tamanduá assados; cobra frita; anum assado ou ensopado; caramujos recheados e tanajura frita. Da minha infância, lembro-me de uma amiga da família, que vivera no Amazonas, contando sobre a popularidade da carne de macaco na região. A simples ideia para mim já é repugnante.
Anchieta (1534-1597) apreciava carne de tamanduá; o entomólogo inglês Henry Walter Bates (1825-1892), que esteve pelo Brasil, provou e achou que parecia com carne de ganso. Cobra frita é um prato muito apreciado, segundo Câmara Cascudo e “é a (carne) da cascavel a mais delicada e eficaz”. Interessante é o caso da receita de anum, ave que vive de carrapatos e cheira muito mal, mas o atrativo desse prato é a superstição: “para conquistar a moça amada, comer coração de anum”.
Tanajura (a fêmea da saúva) frita é prato de paulista e que lhe valeu muita zombaria; porém, quem provou da iguaria diz que o gosto assemelha-se ao do camarão. “Quase todos os naturalistas que visitaram o Brasil no século XIX provaram a tanajura com gabos” – afirma o folclorista. O pitéu era comum também em outros estados.

 
                          

“Tradições de família” de Morgan Weisting (1964), um pintor californiano que se tornou conhecido por reproduzir cenas do cotidiano dos pioneiros norte-americanos.
 









"Cozinha de roça", do mineiro Rui de Paula (1961).

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