quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A COMILANÇA DO NATAL

É tudo culpa dos portugueses. Pelo menos é o que Luis da Câmara Cascudo garante: “Festa portuguesa sem comida e bebida é uma anomalia inconcebível”. E arremata: “Até o Menino Jesus come e dá que comer”.

Oh, meu Menino Jesus,
Sua boquinha de requeijão!
Dai-me de vossa merenda,
Que minha mãe não tem pão.
[...]
Oh, meu Menino Jesus,
Inda tenho mais para vos dar
Esta pequena lembrança
Uma chouriça para assar.

Em Portugal, diz o folclorista brasileiro, “Até as alminhas vão comer as migalhas da mesa, na noite de Natal de tão familiar, essencialmente familiar, que a festa é”. E assim, quando desembarcaram no litoral brasileiro, trouxeram na bagagem e no sangue essa mania que herdamos e desenvolvemos com tanto cuidado. O Natal tropical mantém a tradição do Natal setentrional com as castanhas, as nozes, avelãs e amêndoas. Não faltam as rabanadas. Comida de pobre elevada à iguaria: pão amanhecido embebido no leite (prefiro vinho), passado no ovo, frito e salpicado de açúcar e canela – ah! as especiarias que vieram com as caravelas, cravo, pimenta-do-reino (claro!), noz-moscada...
Mário de Andrade dá uma ideia do paladar nacional em seu conto “Peru de Natal” (1942) em que retrata uma singela ceia familiar na primeira metade do século passado e que termina em “uma felicidade gustativa”.

“Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...) empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando disso que arrebentei com uma das minhas ‘loucuras’:
- Bom, no Natal, quero comer peru.
[...]
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixas pretas e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquela de incenso assoprado, ai não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus ‘gostos’ já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro meu vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por minha mãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.”

 Os pratos do Natal lusitano variam entre bacalhau, polvo, peru e cabrito.  O peru não fez parte dos natais de minha infância, que incluía sempre pernil e roast beef, saladas, muitas frutas naturais e secas e rabanadas – inesquecível o delicioso perfume da canela que inundava a sala de jantar nas manhãs de Natal. Num tempo pré-panetones, não me lembro de bolos nesta festa. O panetone, aliás, chegou ao Brasil com os imigrantes italianos do pós-guerra, na segunda metade do século passado. Fez muito sucesso e, naturalmente, passou por várias modificações para atender a todos os gostos.

Nesse feriado em que se celebra a família, vale cozinhar aquilo que se tem à mão e ao gosto de todos, pois o importante são os temperos cheios de carinho, recheados d e boa vontade. 


Ceia de Natal: cartão polonês.

Carl Larsson (1853-1919).

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