sexta-feira, 21 de agosto de 2020

UM LUGAR ACONCHEGANTE

Em noites frias, a cama tem um apelo especial. Depois de um dia de trabalho, nada como esgueirar-se sob as cobertas para ler, escrever, ouvir música, ver um filme e, especialmente dormir. Há outras atividades possíveis, claro, e isso fica por conta de cada um. Esse móvel simples – um suporte para o estrado, que tem o colchão como complemento – é o centro do quarto, o local mais íntimo da moradia. Essa simplicidade pode ser muito sofisticada e tudo depende do poder aquisitivo da pessoa: materiais nobres para o móvel e tecnologia de ponta para os colchões, sem contar os revestimentos dignos das mil e uma noites.

Deitado confortavelmente entre lençóis perfumados, quem se interessa pelas dificuldades do homem para enfrentar as noites de inverno no início dos tempos, antes de dominar o fogo? Dormir todos juntos para aproveitar o calor dos corpos? O interior de cavernas por certo ajudava e a origem da cama deve ter sido o revestimento do chão com folhas para diminuir a friagem do solo; depois veio o forro de peles e, quando aprendeu a fiar e tecer, envolveu as folhas ou a palha no tecido, o que seria o princípio do colchão.

Por milhares de anos a cama foi um privilégio e era sempre coletiva. No século XVIII, no interior da Normandia, ainda se dormia sobre palha, sem lençol. Catres e enxergas são o leito dos pobres desde sempre. Em outros lugares (pelo menos na Europa), aqueles que podiam construir uma cama e ter um colchão, procuravam fazê-la alta para evitar o frio do chão e muitas vezes era preciso um banquinho para subir ao leito.

Os colchões também eram altos e quanto mais altos melhor. Ali, dormia toda a família. Os lençóis raramente eram trocados. Uma situação que se prolongaria ainda por muitos séculos, como testemunha um pesquisador francês da primeira década do século passado: “Os camponeses dormem quarenta anos sobre o mesmo acolchoado, sem trocá-lo e sem nem ao menos arejar as penas”. 

Outra solução foi a cama armário. Durante o dia era um móvel e à noite abrigava até duas pessoas, que dormiam com as cortinas fechadas. O móvel podia ser bem grande e “guardar” uma população maior. O geógrafo Elisée Reclus descreveu em 1875 esta cena em uma habitação alpestre na França: “À noite, fecham-se todas as saídas (da casa), para impedir que o frio do exterior penetre nos quartos: velhos, pai, mãe e filhos, todos dormem em uma espécie de armário com andares, cujas cortinas ficam fechadas de dia e onde se acumula, durante o sono das noites, um ar ainda mais impuro que o do resto da cabana”.  

Evidentemente, conforto e higiene eram coisas desconhecidas. Custavam muito caro. Foi a Igreja que estabeleceu as regras de uso, definindo a ocupação dos espaços nas camas. As camas armários vistas em museus parecem pequenas demais aos nossos olhos do século XXI, farto de proteínas e vitaminas. As pessoas, além de serem baixas e magras, não se deitavam para dormir – posição que atribuíam aos mortos. Alguns acreditam que o costume também é uma decorrência das epidemias de cólera, quando o doente largado sobre o leito corria o risco de ser considerado morto.

Nossos silvícolas, vivendo em clima mais ameno, na época do descobrimento usavam a rede, que o europeu adotou e o brasileiro manteve. A história paulistana registra o status da cama em princípios do século XVIII. A Câmara de São Paulo, em nome do rei, invocou o direito de requisitar a cama de propriedade de Gonçalves Pires, dono da única cama em condições de ser oferecida a um visitante ilustre da vila e que insistiu em não emprestá-la. O móvel foi levado e ao ser devolvido Gonçalves Pires recusou-se a usá-lo novamente. 

Foto: Museu Casa de Rembrandt, Amsterdam. Ao fundo, a cama armário do pintor. Wikipedia.

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