Sou uma pessoa
repleta de contradições. Neste período imprevisto que vivemos, meu lado nômade já
se acostumou ao sedentarismo, o que não significa que deseje continuar em casa
indefinidamente. Longe de me sentir presa desfruto o tempo que antes dedicava
às caminhadas e passeios em atividades que relegava para amanhã.
Há sempre o conforto dos livros, da música e da mídia que me dá acesso ao
mundo exterior, ao passado e ao futuro. E, naturalmente, as janelas que sempre
abro logo cedo para ver se chove, faz sol, frio ou calor... Melhor do que
consultar o site de meteorologia. Antes,
via as pessoas caminhando para o trabalho, para correr no parque ou ir
simplesmente à padaria ou à banca de jornal; peruas escolares apanhando as
crianças e os funcionários dos prédios varrendo calçadas; depois começava o
congestionamento ‒ no céu, helicópteros; na terra, ônibus, motos e carros por
quase toda a manhã. Agora, silêncio, quebrado pelo caminhão dos ovos e pelo
vendedor de pamonhas que aparecem à tarde. O homem das frutas comparece de vez
em quando. Os carros continuam estacionados ao longo das calçadas, com jeito de
abandono. Os taxistas abandonaram o ponto e só recentemente o mais jovem
reapareceu, mas desistiu por falta de freguesia. Hoje ouvi algo estranho e fui
investigar: um helicóptero! Até mesmo o excêntrico atleta e seu treinador sumiram.
Talvez porque as Olimpíadas tenham sido adiadas...
O bairro é basicamente residencial. As casas estão desaparecendo dando
lugar a enormes prédios de apartamentos. O comércio é, basicamente, de
serviços: padarias, restaurantes, lavanderias, farmácias, supermercados e
mercadinhos, que permanecem em funcionamento dentro das novas regras sanitárias. O movimento, entretanto, é mínimo, porque
prevalecem as entregas domiciliares. Nesse novo panorama noto a ausência dos
idosos que encontrava diariamente, nos pontos de ônibus, nas esquinas
conversando fiado; muitos que vivem sozinhos procuravam companhia para uma boa
conversa, na pracinha, na banca de jornal, na loja do jogo do bicho ou em uma
das lavanderias; afinal, televisão não é companhia. Nesses locais privados há
até banquinhos para que eles fiquem confortáveis. Quase todos sumiram. Exceto um
idoso cadeirante que vive sozinho. Todos os dias vai até a banca onde passa as
horas. Um esforço imenso porque somos muito bem servidos de ladeiras. Bem poucos
encontro quando vou ao supermercado ou ao banco.
Estranhos e tristes tempos. Essa é uma visão da minha janela, da minha
rua... Não sou indiferente ao sofrimento que não vejo. Sofrimento pela doença,
sofrimento pelo desamparo econômico, a falta de perspectivas ou perspectivas
ruins...
Ilustrações: telas do pintor belga Henri de Braekeleer (1840-1888).
2 comentários:
Adorei! Eu frequento muito minha janela agora. É gostoso tomar uma cerveja no fim de tarde olhando a pracinha e o arvoredo atrás do MASP, vendo os tons do céu tarde escurecendo aos poucos. Beijos.
Bom dia, Nilton. Um belo panorama você desfruta. Cerveja? Boa pedida. Cuide-se. Um abraço virtual.
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