terça-feira, 12 de maio de 2020

LITERATURA, EPIDEMIA E ISOLAMENTO.

Josse Lieferinxe 1493-1503).*
O escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731) é conhecido, principalmente, por uma obra: “Robinson Crusoé”, publicado em 1719 e por trezentos anos a aventura desse náufrago solitário continua encantando leitores de todos os continentes. Entretanto, Defoe escreveu também “Um Diário do Ano da Peste” (1722), obra de ficção já que ele nasceu após a epidemia que assolou Londres entre 1665 e 1666. A peste negra ou bubônica, transmitida por ratos infectados, matou um quinto da população londrina. O auge da epidemia na Europa ocorreu no século XIV. 
        Obra de ficção de qualidade porque o narrador trata dos fatos e do cotidiano daquele período de uma forma jornalística. À medida que o personagem caminha por Londres devassada pela desgraça, ele fornece um painel vívido da situação enfrentada pelos londrinos. Aqui, transcrevo um trecho sobre o comportamento da população em meio à epidemia:
       “Tal é o temperamento precipitado do nosso povo (se é assim ou não no mundo inteiro, não é da minha conta averiguar), e vi isto claramente aqui, pois, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas evitavam-se umas às outras e fugiam das casas dos outros e da cidade com um indescritível e, na minha opinião, desnecessário medo. Assim que, nesse momento, espalhando-se a noção de que a doença não era mais tão contagiosa como antes e que contraí-la já não era fatal, ou seja, vendo a abundância de gente realmente doente que se restabelecia todos os dias, o povo adquiriu uma coragem tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo e com a epidemia que não considerava a peste mais do que uma febre comum, ou nem mesmo isso.
         Em seguida o narrador explica que tão terrível quanto a doença era o tratamento:
[...]
“havia outra coisa que tornava a mera contração da doença apavorante, a terrível queimadura dos corrosivos que os cirurgiões jogavam sobre os inchaços para que se rompessem e supurassem, pois sem isso o perigo de morte era muito maior, mesmo no final. E também o tormento insuportável dos inchaços que, embora não levassem as pessoas ao delírio e à loucura como antes, do que já dei vários exemplos, mesmo assim expunham o paciente a um tormento indescritível. Os que ficavam assim, embora escapassem com vida, faziam amargas queixas daqueles que lhes disseram não haver perigo, arrependendo-se tristemente de sua imprudência e maluquice ao se arriscar ficando ao alcance da peste”.
[...]
“A razão disso eu considero a imprudente exposição do povo ao perigo, abandonando todas suas precauções e cuidados anteriores, todo o recato que costumava cultivar, acreditando que a doença não o atingiria – ou, se o fizesse, não mataria.”
“Os médicos se opuseram com todo seu poder a esse estado de espírito impensado do povo, lançando instruções impressas que foram distribuídas na city e subúrbios aconselhando o povo a continuar recolhido e ainda empregar as mais extremas precauções na sua conduta cotidiana, apesar do abrandamento da epidemia, e o atemorizava com o perigo de uma recaída em toda a cidade, dizendo que uma recaída poderia ser mais fatal e perigosa do que todo o flagelo que já ocorrera, com muitos argumentos e razões para explicar e provar isso ao povo que são longos demais para repeti-los aqui.
Tudo, porém, foi em vão. As criaturas audaciosas estavam tão possuídas pela primeira alegria e tão surpresas com a satisfação de ver uma grande redução nos registros semanais de óbitos, que ficaram insensíveis a qualquer novo terror e não seriam persuadidas, a não ser de que o amargor da morte passara. Também não adiantava nada conversar com elas, não mais do que com um vento leste. Abriram as lojas, saíram para as ruas, fizeram negócios, conversaram com qualquer um que encontraram para conversar em seu caminho, fosse a negócios ou não, sequer perguntando pela sua saúde, nem mesmo ficando apreensivos de qualquer perigo vindo destes, embora soubessem que não estavam sãos. Essa conduta imprudente e precipitada custou muitas e muitas vidas daqueles que tinham se trancafiado com muito cuidado e precaução, mantendo-se isolados de toda a humanidade como se fazia, sendo, deste modo, sob a providência de Deus, poupados durante todo o clímax daquela epidemia.
“Essa conduta precipitada e maluca do povo foi tão longe, digo, que os sacerdotes afinal chamaram sua atenção para ela, expondo o perigo e a loucura daquilo; o que a conteve um pouco, pois assim o povo tornou-se mais prudente. Isso, porém, teve outra conseqüência que não pôde ser evitada. Quando se espalharam os primeiros rumores, não somente na cidade mas em todo o país, isso teve o seguinte efeito: o povo estava tão cansado de permanecer tanto tempo longe de Londres e tão ansioso por voltar, que veio para a cidade em multidões, sem medo ou previsões, começando a surgir pelas ruas como se todo o perigo tivesse passado. Ver isso foi realmente surpreendente, pois embora ainda morressem lá de mil a 1.800 por semana, o povo, mesmo assim, se aglomerava na cidade como se estivesse tudo bem.
“O resultado disso foi que os registros de óbitos aumentaram outra vez: quatrocentos mortos na primeira semana de novembro e, se devo dar crédito aos médicos mais de três mil ficaram doentes naquela semana, sendo a maioria também recém-chegada.”

*Saint Sebastian interceding for the plague stricken", obra de J. Lieferinxe (1493-1503).

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