Josse Lieferinxe 1493-1503).* |
Obra de ficção de qualidade porque o
narrador trata dos fatos e do cotidiano daquele período de uma forma
jornalística. À medida que o personagem caminha por Londres devassada pela
desgraça, ele fornece um painel vívido da situação enfrentada pelos londrinos. Aqui,
transcrevo um trecho sobre o comportamento da população em meio à epidemia:
“Tal é o temperamento precipitado do nosso povo (se é
assim ou não no mundo inteiro, não é da minha conta averiguar), e vi isto
claramente aqui, pois, diante do primeiro pavor da epidemia, as pessoas
evitavam-se umas às outras e fugiam das casas dos outros e da cidade com um
indescritível e, na minha opinião, desnecessário medo. Assim que, nesse
momento, espalhando-se a noção de que a doença não era mais tão contagiosa como
antes e que contraí-la já não era fatal, ou seja, vendo a abundância de gente
realmente doente que se restabelecia todos os dias, o povo adquiriu uma coragem
tão precipitada e tornou-se tão despreocupado consigo mesmo e com a epidemia
que não considerava a peste mais do que uma febre comum, ou nem mesmo isso.
Em seguida o narrador explica que tão terrível quanto a
doença era o tratamento:
[...]
“havia
outra coisa que tornava a mera contração da doença apavorante, a terrível
queimadura dos corrosivos que os cirurgiões jogavam sobre os inchaços para que
se rompessem e supurassem, pois sem isso o perigo de morte era muito maior,
mesmo no final. E também o tormento insuportável dos inchaços que, embora não
levassem as pessoas ao delírio e à loucura como antes, do que já dei vários
exemplos, mesmo assim expunham o paciente a um tormento indescritível. Os que
ficavam assim, embora escapassem com vida, faziam amargas queixas daqueles que
lhes disseram não haver perigo, arrependendo-se tristemente de sua imprudência
e maluquice ao se arriscar ficando ao alcance da peste”.
[...]
“A
razão disso eu considero a imprudente exposição do povo ao perigo, abandonando
todas suas precauções e cuidados anteriores, todo o recato que costumava
cultivar, acreditando que a doença não o atingiria – ou, se o fizesse, não
mataria.”
“Os
médicos se opuseram com todo seu poder a esse estado de espírito impensado do
povo, lançando instruções impressas que foram distribuídas na city e subúrbios aconselhando o povo a
continuar recolhido e ainda empregar as mais extremas precauções na sua conduta
cotidiana, apesar do abrandamento da epidemia, e o atemorizava com o perigo de
uma recaída em toda a cidade, dizendo que uma recaída poderia ser mais fatal e
perigosa do que todo o flagelo que já ocorrera, com muitos argumentos e razões
para explicar e provar isso ao povo que são longos demais para repeti-los aqui.
Tudo,
porém, foi em vão. As criaturas audaciosas estavam tão possuídas pela primeira
alegria e tão surpresas com a satisfação de ver uma grande redução nos
registros semanais de óbitos, que ficaram insensíveis a qualquer novo terror e
não seriam persuadidas, a não ser de que o amargor da morte passara. Também não
adiantava nada conversar com elas, não mais do que com um vento leste. Abriram
as lojas, saíram para as ruas, fizeram negócios, conversaram com qualquer um
que encontraram para conversar em seu caminho, fosse a negócios ou não, sequer
perguntando pela sua saúde, nem mesmo ficando apreensivos de qualquer perigo
vindo destes, embora soubessem que não estavam sãos. Essa conduta imprudente e
precipitada custou muitas e muitas vidas daqueles que tinham se trancafiado com
muito cuidado e precaução, mantendo-se isolados de toda a humanidade como se
fazia, sendo, deste modo, sob a providência de Deus, poupados durante todo o
clímax daquela epidemia.
“Essa
conduta precipitada e maluca do povo foi tão longe, digo, que os sacerdotes
afinal chamaram sua atenção para ela, expondo o perigo e a loucura daquilo; o
que a conteve um pouco, pois assim o povo tornou-se mais prudente. Isso, porém,
teve outra conseqüência que não pôde ser evitada. Quando se espalharam os
primeiros rumores, não somente na cidade mas em todo o país, isso teve o
seguinte efeito: o povo estava tão cansado de permanecer tanto tempo longe de
Londres e tão ansioso por voltar, que veio para a cidade em multidões, sem medo
ou previsões, começando a surgir pelas ruas como se todo o perigo tivesse
passado. Ver isso foi realmente surpreendente, pois embora ainda morressem lá
de mil a 1.800 por semana, o povo, mesmo assim, se aglomerava na cidade como se
estivesse tudo bem.
“O
resultado disso foi que os registros de óbitos aumentaram outra vez:
quatrocentos mortos na primeira semana de novembro e, se devo dar crédito aos
médicos mais de três mil ficaram doentes naquela semana, sendo a maioria também
recém-chegada.”
*Saint Sebastian interceding
for the plague stricken", obra de J. Lieferinxe (1493-1503).
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