Confesso que não gosto
muito de poesia, mas FERNANDO PESSOA
(1888-1935) é extraordinário. Poesias selecionadas do "Cancioneiro".
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
MAR. MANHÃ
Suavemente grande avança
Cheia de sol a onda do mar;
Pausadamente se balança,
E desce como a descansar.
Tão lenta e longa que parece
De uma criança de Titã
O glauco seio que adormece,
Arfando à brisa da manhã.
Parece ser um ente apenas
Este correr da onda do mar
Como uma cobra que em serenas
Dobras se alongue a colear.
Unido e vasto e interminável
No são sossego azul do sol,
Arfa com um mover-se estável
O oceano ébrio de arrebol.
E a minha sensação é nula,
Quer de prazer, quer de pesar...
Ébria de alheia a mim ondula
Na onda lúcida do mar.
VISÃO
Do que a vida que o mundo
mostra ter
Mais do que a Natureza
natural
À verdade tremendo de viver.
Sob um céu uno e plácido e
normal
Onde nada se mostra haver ou
ser
Onde nem vento geme, nem
fatal
A ideia de uma nuvem se faz
crer,
Jaz — uma terra não — não um
solo
Mas estranha, gelando em
desconsolo
A alma que vê esse pais sem
véu,
Hirtamente silente nos
espaços
Uma floresta de escarnados braços
Inutilmente erguidos para o céu.
III
Só quem puder obter a estupidez
Ou a loucura pode ser feliz.
Buscar, querer, amar... tudo isto diz
Perder, chorar, sofrer, vez após vez.
A estupidez achou sempre o que quis
Do círculo banal — da sua avidez;
Nunca aos loucos o engano se desfez
Com quem um falso mundo seu condiz.
Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males:
É conhecê-los bem, saber que são
Um o horror real, o outro o vazio —
Horror não menos — dois como que vales
Duma montanha que ninguém subiu.
"Fernando Pessoa. Obra Poética." Rio de Janeiro, RJ, Editora Nova Aguilar, 1983.
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