terça-feira, 20 de outubro de 2020

DIA DO POETA.

Confesso que não gosto muito de poesia, mas FERNANDO PESSOA (1888-1935) é extraordinário. Poesias selecionadas do "Cancioneiro". 

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

MAR. MANHÃ

Suavemente grande avança

Cheia de sol a onda do mar;

Pausadamente se balança,

E desce como a descansar.

 

Tão lenta e longa que parece

De uma criança de Titã

O glauco seio que adormece,

Arfando à brisa da manhã.

 

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar

Como uma cobra que em serenas

Dobras se alongue a colear.

 

Unido e vasto e interminável

No são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.

 

E a minha sensação é nula,

Quer de prazer, quer de pesar...

Ébria de alheia a mim ondula

Na onda lúcida do mar.

 

VISÃO

 Há um país imenso mais real

Do que a vida que o mundo mostra ter

Mais do que a Natureza natural

À verdade tremendo de viver.

 

Sob um céu uno e plácido e normal

Onde nada se mostra haver ou ser

Onde nem vento geme, nem fatal

A ideia de uma nuvem se faz crer,

 

Jaz — uma terra não — não um solo

Mas estranha, gelando em desconsolo

A alma que vê esse pais sem véu,

 

Hirtamente silente nos espaços

Uma floresta de escarnados braços

Inutilmente erguidos para o céu.


III

Só quem puder obter a estupidez

Ou a loucura pode ser feliz.

Buscar, querer, amar... tudo isto diz

Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

 

A estupidez achou sempre o que quis

Do círculo banal — da sua avidez;

Nunca aos loucos o engano se desfez

Com quem um falso mundo seu condiz.

 

Há dois males: verdade e aspiração,

E há uma forma só de os saber males:

É conhecê-los bem, saber que são

 

Um o horror real, o outro o vazio —

Horror não menos — dois como que vales

Duma montanha que ninguém subiu.


"Fernando Pessoa. Obra Poética." Rio de Janeiro, RJ, Editora Nova Aguilar, 1983. 

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