domingo, 4 de outubro de 2020

DOMINGO NA SÉ

Catedral da Sé, 13 de março de 2020.

O VAGABUNDO

Álvares de Azevedo (1831-1832)

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, 

Fumando meu cigarro vaporoso, 

Nas noites de verão namoro estrelas, 

Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!


Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas...
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando, à noite, na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores,
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto,
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismando
Na donzela que ali defronte mora...
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora...

Tenho por meu palácio as longas ruas,
Passeio a gosto e durmo sem temores...
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,

Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua...
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni,
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela
Bem dourada e amante da preguiça,
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa. 


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