quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

LÁ VEM O BONDE

 

Há alguns anos vi uma reportagem sobre um rapaz que adorava viajar de ônibus pela cidade. O jornalista, entretanto, não teve sensibilidade para fazer um bom trabalho e preferiu ridicularizar pessoa que poderia dar uma matéria muito interessante. O cineasta Pedro Almodóvar em seu filme “Carne Trêmula” (1997) criou o personagem que nasceu em um ônibus quando a mãe sem dinheiro ia para a maternidade, fato que a empresa de transporte tratou de usar como peça de autopromoção e concedeu ao pimpolho um passe de ônibus vitalício. Algo cruel, como se fosse uma condenação a uma vida sem perspectivas de um dia ter seu próprio meio de transporte ‒ bicicleta, moto, carro...

Se você pensar um pouco os transportes coletivos concentram personagens, que se movimentam pelas cidades, carregando suas histórias simples, rebuscadas, angustiantes e tão fantásticas que muitas vezes parecem ficção. Muitos estão prontos para dividir suas experiências que nem sempre estamos muito dispostos a ouvir envolvidos em nossos próprios problemas. Já ouvi narrativas muito interessantes, muitas esdrúxulas, bizarras e desagradáveis (como a descrição de um procedimento cirúrgico).

Embora não seja fã de conversa com criança, foi um garotinho de uns oito ou nove anos que me proporcionou uma conversa deliciosa numa viagem entre Santos e São Paulo. Quando se sentou ao meu lado no banco da frente não me entusiasmei com a companhia. A família estava mais atrás. Quando o irmão mais velho passou ele perguntou o que era uma “flamula” e apontou o cartaz de vende-se na banca da rodoviária. Corrigi a pronúncia e expliquei o que era  o irmão ignorara a pergunta. Não incentivei a conversa, que ele conduziu com maestria: falou da escola, das brincadeiras, da paisagem da Serra do Mar, que o encantou, da família (o pai passava os fins de semana polindo o carro). Foi nos idos dos anos de 1970 e não me lembro dos detalhes. Ao chegar a rodoviária de São Paulo, disse-me que tinha gostado muito de conversar, nem enjoara, se despediu como um pequeno cavalheiro e seguiu os pais que vieram para a frente a fim de descer logo. Nunca o esqueci pela inteligência e desembaraço... 

Eu ia para escola a pé; só precisei usar transporte quando fui estudar no Instituto de Educação Canadá em 1964. Ia de bonde (32); para ir à Faculdade de Filosofia, ou pegava o trólebus 53 que passava em frente de casa. Até hoje sou fã desses dois veículos por causa da estabilidade e segurança para os passageiros. Em São Paulo, os trólebus resistem e uso o 408 A que vai da Rua Machado de Assis à Rua Cardoso de Almeida ‒ num trajeto cheio de muitas atrações.  

Quanto aos bondes, sempre que viajo para o exterior mato a saudade. Assim já viajei de bonde no Porto (a cidade doou para Santos um veículo de uso turístico) e em Lisboa; Roma e Nápoles, Viena, Berlim e Munique e Praga; nos Estados Unidos, em S. Francisco e S. Diego (CA) e New Orleans (LA). Um veículo parecido com o bonde é o VLT - Veículo Leve sobre Trilhos, que me agrada muito também, e sempre que encontro um pelo caminho embarco sem hesitar.

Alexandria, Egito, 2010.
S. Francisco, Estados Unidos, 2017.

San Diego, Califórnia, 2017.

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