terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A MORTE DOS POBRES

Os cabelos desgrenhados e a barba longa, sujos como as roupas, mal deixam ver o rosto inchado e os olhos vermelhos. Difícil avaliar a idade dele. Vinte ou sessenta anos. Ele é alcoólatra. Vive na rua. Provavelmente, nas imediações. Por aqui apareceu após a pandemia e se instalou na calçada do outro lado da padaria, pois em frente à casa de pães há carros de clientes o dia todo, mas às vezes Robertão (hoje soube o nome dele) se instala junto ao muro da casa vizinha. Quando passo de vez em quando o ouço resmungar; mas já o vi zangado com brincadeiras sem graça de algumas pessoas. Não incomoda ninguém – nem pedestres ou clientes do estabelecimento. Não pede coisa alguma. Nem precisa porque a padaria lhe fornece o café da manhã e o almoço. Hoje me lembrei de perguntar se a padaria tem um programa de atendimento aos necessitados e fui informada de que, embora não tenha, sempre que alguém pede é atendido. Robertão é o único “cliente” fixo.

    Escrevi esta crônica no último dia 15 de outubro, mas não publiquei. No início deste mês Robertão morreu junto à porta da igreja do bairro, provavelmente no meio da noite chuvosa. Sozinho. Lembrei-me dele ao ler este soneto de Charles Baudelaire (1821-1867).


A MORTE DOS POBRES

 

Vivemos pela Morte e só ela é que afaga;

E a única esperança e o mais alto prazer,

Que como um elixir nos transporta e embriaga,

E nos faz caminhar até o anoitecer.

 

E, através da tormenta e da neve e da vaga,

É o vibrante clarão de nosso obscuro ser,

Albergue inscrito em livro e que nunca se apaga,

Feito para jantar e para adormecer.

 

É um anjo que segura em seus dedos magnéticos

O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos,

 Que sempre arruma o leito aos pobres, como aos rotos;

 

Ela é a gloria de deus e a bolsa do mendigo,

É o místico celeiro e mais o lar antigo,

Pórtico que se abriu para os céus mais ignotos. 



CHARLES BAUDELAIRE – “FLORES DO MAL”. Tradução de Pietro Nassetti. Editora Martin Claret.


Obra do pintor mexicano Francisco Goitia (1882-1960).



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