Os cabelos
desgrenhados e a barba longa, sujos como as roupas, mal deixam ver o rosto
inchado e os olhos vermelhos. Difícil avaliar a idade dele. Vinte ou sessenta
anos. Ele é alcoólatra. Vive na rua. Provavelmente, nas imediações. Por aqui
apareceu após a pandemia e se instalou na calçada do outro lado da padaria,
pois em frente à casa de pães há carros de clientes o dia todo, mas às vezes Robertão
(hoje soube o nome dele) se instala junto ao muro da casa vizinha. Quando passo
de vez em quando o ouço resmungar; mas já o vi zangado com brincadeiras sem
graça de algumas pessoas. Não incomoda ninguém – nem pedestres ou clientes do
estabelecimento. Não pede coisa alguma. Nem precisa porque a padaria lhe
fornece o café da manhã e o almoço. Hoje me lembrei de perguntar se a padaria
tem um programa de atendimento aos necessitados e fui informada de que, embora
não tenha, sempre que alguém pede é atendido. Robertão é o único “cliente”
fixo.
Escrevi
esta crônica no último dia 15 de outubro, mas não publiquei. No início deste
mês Robertão morreu junto à porta da igreja do bairro, provavelmente no meio da
noite chuvosa. Sozinho. Lembrei-me dele ao ler este soneto de Charles Baudelaire
A MORTE DOS POBRES
Vivemos pela Morte e só ela é que afaga;
E a única esperança e o mais alto prazer,
Que como um elixir nos transporta e embriaga,
E nos faz caminhar até o anoitecer.
E, através da tormenta e da neve e da vaga,
É o vibrante clarão de nosso obscuro ser,
Albergue inscrito em livro e que nunca se apaga,
Feito para jantar e para adormecer.
É um anjo que segura em seus dedos magnéticos
O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos,
Que sempre arruma o
leito aos pobres, como aos rotos;
Ela é a gloria de deus e a bolsa do mendigo,
É o místico celeiro e mais o lar antigo,
Pórtico que se abriu para os céus mais ignotos.
CHARLES BAUDELAIRE – “FLORES DO MAL”. Tradução de Pietro
Nassetti. Editora Martin Claret.
Obra do pintor mexicano
Francisco Goitia (1882-1960).
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