Para terminar 2023, a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna (1937).
VAI, ANO VELHO
Vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas
dívidas
e dúvidas, vai,
dobra a ex-
quina da sorte,
e no trinta e um,
à meia-noite,
esgota o copo
e a culpa do
que nem lembro
e me cravou
entre janeiro e
dezembro.
Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva para a escuridão
que me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca mais.
Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, alagadas, antigas,
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
— de utopia.
Vem na areia da ampulheta como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casa da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.
Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
a utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.
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