quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A PAULICEIA DE GUILHERME DE ALMEIDA

É uma experiência muito reveladora ler crônicas antigas sobre lugares e cenários, que percorremos e vemos no dia a dia, para descobrir a transitoriedade de tudo – o que ontem foi ruim, hoje pode ser maravilhoso. Ou vice-versa. Quando lamentamos a sorte choramingando sobre problemas cotidianos, como os buracos nas ruas, a falta de pontualidade dos transportes públicos, a poluição sonora, o mau comportamento das pessoas, achamos que tudo isso é coisa destes tempos... Enfim, lendo as crônicas de Urbano, publicadas de 1927 a 1928 no jornal paulistano Diário Nacional, parece que, se o cenário da Pauliceia mudou muito em cem anos, muitos problemas continuam ampliados ou com acréscimo de outros.

Urbano estreou a coluna em 14 de julho de 1927, com uma constatação verdadeira: “A cousa complicada que é uma cidade qualquer!” E outra, falsa. “A cousa complicadíssima que é uma grande cidade moderna!” Bom, na Antiguidade (II d. C.), Roma já era uma cidade complicadíssima com uma população surpreendente para época: um milhão de habitantes, enquanto São Paulo em 1930 tinha novecentos mil moradores. E Urbano, com bom humor, vai dando ao leitor uma visão muito pessoal de São Paulo na década de vinte, quando circulavam pelas ruas estreitas bondes, ônibus, táxis e, naturalmente, os pedestres. Frequentemente em completa desavença. Eventualmente, ele respondia às cartas de leitores (verdadeiros ou não). “Bem-aventurados os que reclamam porque... Porque fornecem ao cronista entediado, nesses dias mornos de noroeste e bocejos, o assunto, o bendito assunto que a imaginação avara lhe recusa.”

Indignado, ele fala dos cavalheiros que se atrevem a andar pelas calçadas carregando grandes volumes, o que é um problema “porque transitar em S. Paulo, por essas ruas de estreitos passeios e largo movimento, é, hoje em dia, uma verdadeira corrida de obstáculos.” E Urbano não podia imaginar que a situação iria piorar muito.

Um leitor ruim de gramática se queixa do abandono de ruas do Bom Retiro “todas edificadas de um lado aoutro a mais de 40 anos e até hoje abandonadas”. O tal “leitor assíduo”, como assina a missiva, termina com um “Grátis pela publicação”. Outros reclamam contra um ladrão contumaz nas alamedas ao longo da avenida Paulista. Urbano chama o gatuno de ladrão unilateral porque só rouba galinhas e estas, segundo o cronista, já conhecem o gatuno porque não fazem barulho, não reagem e (e aqui Urbano erra feio) não mordem (galinhas bicam, Urbano).

No dia 11 de agosto de 1927, uma deliciosa crônica sobre o primeiro centenário da Faculdade de Direito. “Uma vez... (a dolorosa delícia de lembrar!) uma vez em 1911, o Teatro São José (...) foi alvo da estudantada solta”. Urbano formou-se no Largo de São Francisco e em 1927, esse teatro já não existia...  

E assim, folheando as páginas do livro, vou encontrando referências aos vândalos que destruíam os lampiões de gás, à má sinalização das ruas; ao barulho ensurdecedor das Klaxon (marca da buzina) acionadas por qualquer banalidade, por deliciosas descrições dos passageiros de bondes e ônibus em que Urbano transitava pela cidade...

Quem foi esse Urbano que encanta e diverte até hoje com suas crônicas sobre São Paulo? Urbano era o pseudônimo do poeta, advogado e jornalista Guilherme de Almeida (1890-1969), um dos organizadores da Semana de Arte Moderna (1922). “Pela Cidade”, edição preparada por Frederico Ozanam Pessoa de Barros (Editora Martins Fontes, 2004), reúne as crônicas de Guilherme de Almeida publicadas no Diário Nacional e “Meu Roteiro Sentimental da Cidade de São Paulo”. Graças a ele percorri a cidade antiga durante o período de isolamento da pandemia em 2020.

Escritório de Guilherme de Almeida (Casa GUILHERME DE ALMEIDA). Foto: 2019.

CASA GUILHERME DE ALMEIDA: Rua Macapá, 187, Sumaré.

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