segunda-feira, 3 de setembro de 2018

“NÃO A VEREI RETORNAR”


“NÃO A VEREI RETORNAR”

Para aqueles que não se importam com o que está acontecendo aos acervos artísticos e arquitetônicos nacionais, um resumo do que ocorreu na Europa no início da II Guerra Mundial. O relato detalhado está no livro de Lynn H. Nicholas sobre a luta para a preservação da arte produzida pela humanidade contra a insanidade nazista que se aproximava. Escolhi o trabalho dos franceses no dia 3 de setembro de 1939, mas medidas semelhantes foram tomadas pelos países aliados. O que chama atenção é a responsabilidade que as pessoas envolvidas com museus, mosteiros, bibliotecas e galerias de arte tinham (e têm) e sentiram (e sentem) pelos acervos sob sua guarda.

Na tarde do dia 3 de setembro, a notícia da declaração formal de guerra foi anunciada a vários funcionários do Louvre agrupados no alto da grande escadaria em torno da enorme Vitória de Samotrácia. Ficaram sabendo então que todas as obras mais importantes teriam que ser retiradas naquela mesma noite. A Vitória precisaria descer imediatamente a longa escadaria e ser levada para local seguro:
Monsieur Michon, na época curador do departamento de antiguidades greco-romanas, [...] deu ordens para a remoção da estátua. Ela foi inclinada numa rampa de madeira, sustentada por dois grupos de homens que controlavam a sua descida por meio de cordas estendidas de ambos os lados, como os barqueiros do Volga. Estávamos todos aterrorizados e o silêncio era total enquanto a Vitória rolava lentamente para baixo, suas asas de pedra tremendo ligeiramente. Monsieur Michon prostrou-se nos degraus de pedras, murmurando: ‘Eu não a verei retornar’.
Caminhões de cenários da Comédie-Française foram trazidos para transportar quadros maiores. Embora alguns houvessem sido enrolados, a enorme A Balsa de Medusa, de Géricault, era frágil demais para receber tal tratamento. Os caminhões partiram às seis da tarde, com o sol se pondo. No meticuloso planejamento, que incluíra tomar as medidas de todas as pontes entre Paris e Chambord, as linhas de bondes de Versalhes haviam sido de algum modo negligenciadas, e A Balsa ficou inextricavelmente presa nos fios crepitantes. Magdaleine Hours, enviada na escuridão total da madrugada para acordar seus colegas no Palácio  de Versalhes, descreve vividamente em suas memórias a incumbência aterrorizante de encontrar a campainha, localizada em algum ponto do enorme portão de entrada.”
Reprodução do livro. Foto: Noel de Boyer.
Durante toda a noite, os preciosos comboios avançaram rumo a Chambord. [...] O êxodo continuou em toda parte durante o mês de outubro, à medida que coleções menores seguiam as obras-primas. No início de novembro, praticamente tudo já se encontrava onde deveria estar: os equipamentos anti-incêndio (grifo meu) estavam devidamente instalados, areia havia sido espalhada pelo chão, os higrômetros* postos em funcionamento e os guardas e suas famílias iam se acomodando para viver suas novas vidas no campo.”   

"Ronda Noturna", de Rembrandt, protegida.

Em praticamente toda a Europa os museus se mobilizaram para resguardar dos nazistas as obras de arte que são tesouros da Humanidade. Por aqui ninguém parece muito preocupado. Falta verba, falta vontade política, falta interesse pela educação e cultura nacionais. O desaparecimento do Museu Histórico Nacional é um desastre irreparável. Vergonhoso.

 
Voltaire abrigado entre santos.
*Higrômetros: instrumentos que medem a umidade de gases ou do ar.


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