quarta-feira, 11 de novembro de 2020

HOJE TEM FEIJOADA

Quarta-feira é dia de feijoada. Pelo menos em São Paulo todo restaurante que se preza oferece à distinta clientela feijoada como prato principal. Eu gosto demais do sabor da feijoada - adoro feijão preto, mas só como a carne seca e o paio; houve época em que me deliciava com a costela de porco, mas foram outros tempos. Que tal uma apreciar uma feijoada poética, à moda de Vinicius de Moraes (1913-1980)? Em casa nunca temperamos o feijão com tomate e louro, como o poeta receita. Enfim, vamos lá.

 FEIJOADA À MINHA MODA 

Rio de Janeiro, 1962

Amiga Helena Sangirardi 
Conforme um dia eu prometi 
Onde, confesso que esqueci 
E embora - perdoe - tão tarde 

(Melhor do que nunca!) este poeta 
Segundo manda a boa ética 
Envia-lhe a receita (poética) 
De sua feijoada completa. 

Em atenção ao adiantado 
Da hora em que abrimos o olho 
O feijão deve, já catado 
Nos esperar, feliz, de molho. 

E a cozinheira, por respeito 
À nossa mestria na arte 
Já deve ter tacado peito 
E preparado e posto à parte 

Os elementos componentes 
De um saboroso refogado 
Tais: cebolas, tomates, dentes 
De alho - e o que mais for azado 

Tudo picado desde cedo 
De feição a sempre evitar 
Qualquer contato mais... vulgar 
Às nossas nobres mãos de aedo 

Enquanto nós, a dar uns toques 
No que não nos seja a contento 
Vigiaremos o cozimento 
Tomando o nosso uísque on the rocks. 

Uma vez cozido o feijão 
(Umas quatro horas, fogo médio) 
Nós, bocejando o nosso tédio 
Nos chegaremos ao fogão 

E em elegante curvatura: 
Um pé adiante e o braço às costas 
Provaremos a rica negrura 
Por onde devem boiar postas 

De carne-seca suculenta 
Gordos paios, nédio toucinho 
(Nunca orelhas de bacorinho 
Que a tornam em excesso opulenta!) 

E - atenção! - segredo modesto 
Mas meu, no tocante à feijoada: 
Uma língua fresca pelada 
Posta a cozer com todo o resto. 

Feito o quê, retire-se caroço 
Bastante, que bem amassado 
Junta-se ao belo refogado 
De modo a ter-se um molho grosso 

Que vai de volta ao caldeirão 
No qual o poeta, em bom agouro 
Deve esparzir folhas de louro 
Com um gesto clássico e pagão. 

Inútil dizer que, entrementes 
Em chama à parte desta liça 
Devem fritar, todas contentes 
Lindas rodelas de linguiça 

Enquanto ao lado, em fogo brando 
Desmilinguindo-se de gozo 
Deve também se estar fritando 
O torresminho delicioso 

Em cuja gordura, de resto 
(Melhor gordura nunca houve!) 
Deve depois frigir a couve 
Picada, em fogo alegre e presto. 

Uma farofa? - tem seus dias... 
Porém que seja na manteiga! 
A laranja gelada, em fatias 
(Seleta ou da Bahia) - e chega. 

Só na última cozedura 
Para levar à mesa, deixa-se 
Cair um pouco da gordura 
Da lingüiça na iguaria - e mexa-se. 

Que prazer mais um corpo pede 
Após comido um tal feijão? 
- Evidentemente uma rede 
E um gato para passar a mão... 

Dever cumprido. Nunca é vã 
A palavra de um poeta... - jamais! 
Abraça-a, em Brillat-Savarin 
O seu Vinicius de Moraes. 


 "O homem de sete cores" (1916), de Anita Malfatti. 

2 comentários:

Nilton Tuna disse...

Feijoadas eram as da minha mãe! Lembro como se fosse ontem. Era a especialidade da dona Berta - com tudo a que tinha direito: pés, orelhas, rabos, línguas - nos almoços em que se reunia a família (naquela época, pequena: tios e tias, alguns ainda solteiros outros com seus cônjuges e filhos, apenas um ou dois primos. Mesmo assim, dadas as dimensões das mesas (a da sala e a da cozinha juntas), era preciso fazer dois almoços: um para os familiares do lado do pai e outro para os do lado da mãe. A panela imensa ficava no fogo a noite inteira. Era imensa e meu pai a pedia emprestada à dona Maria Maeda, no Hotel Ushio, que ficava quase em frente à nossa casa na rua Brás Cubas. Ah, como era bom!

Hilda Araújo disse...

Que recordações maravilhosas, Nilton! Comida de mãe e avó é inesquecível e não tem igual. Minha família era bem pequena - ao todo oito pessoas (três viviam no Rio). Feijoada não era um prato comum em casa, mas lembro dos ingredientes que você citou sobre a mesa da cozinha ou de molho. Passei a primeira parte da minha vida enlouquecendo a família porque só comia o que gostava e gostava de bem pouca coisa (arroz, feijão ‒ que era sempre preto em casa, batata e carne, além de massas). Confesso que fui mimada, mas com o tempo passei a apreciar quase tudo - ainda continuo difícil. Da feijoada gosto mesmo do sabor, mas só como dois ou três tipos de carne.