Quarta-feira é dia de feijoada. Pelo menos em São Paulo todo restaurante
que se preza oferece à distinta clientela feijoada como prato principal. Eu gosto
demais do sabor da feijoada - adoro feijão preto, mas só como a carne seca e o
paio; houve época em que me deliciava com a costela de porco, mas foram outros
tempos. Que tal uma apreciar uma feijoada poética, à moda de Vinicius de Moraes
(1913-1980)? Em casa nunca temperamos o feijão com tomate e louro, como o poeta
receita. Enfim, vamos lá.
Rio de Janeiro, 1962
Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia eu prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora - perdoe - tão tarde
(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.
Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho.
E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte
Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho - e o que mais for azado
Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo
Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks.
Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão
E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas
De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)
E - atenção! - segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:
Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.
Feito o quê, retire-se caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso
Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.
Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de linguiça
Enquanto ao lado, em fogo brando
Desmilinguindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso
Em cuja gordura, de resto
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.
Uma farofa? - tem seus dias...
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias
(Seleta ou da Bahia) - e chega.
Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria - e mexa-se.
Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
- Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão...
Dever cumprido. Nunca é vã
A palavra de um poeta... - jamais!
Abraça-a, em Brillat-Savarin
O seu Vinicius de Moraes.
2 comentários:
Feijoadas eram as da minha mãe! Lembro como se fosse ontem. Era a especialidade da dona Berta - com tudo a que tinha direito: pés, orelhas, rabos, línguas - nos almoços em que se reunia a família (naquela época, pequena: tios e tias, alguns ainda solteiros outros com seus cônjuges e filhos, apenas um ou dois primos. Mesmo assim, dadas as dimensões das mesas (a da sala e a da cozinha juntas), era preciso fazer dois almoços: um para os familiares do lado do pai e outro para os do lado da mãe. A panela imensa ficava no fogo a noite inteira. Era imensa e meu pai a pedia emprestada à dona Maria Maeda, no Hotel Ushio, que ficava quase em frente à nossa casa na rua Brás Cubas. Ah, como era bom!
Que recordações maravilhosas, Nilton! Comida de mãe e avó é inesquecível e não tem igual. Minha família era bem pequena - ao todo oito pessoas (três viviam no Rio). Feijoada não era um prato comum em casa, mas lembro dos ingredientes que você citou sobre a mesa da cozinha ou de molho. Passei a primeira parte da minha vida enlouquecendo a família porque só comia o que gostava e gostava de bem pouca coisa (arroz, feijão ‒ que era sempre preto em casa, batata e carne, além de massas). Confesso que fui mimada, mas com o tempo passei a apreciar quase tudo - ainda continuo difícil. Da feijoada gosto mesmo do sabor, mas só como dois ou três tipos de carne.
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