As relações entre David e John me parecem complicadas. David deve fama e fortuna a John, que muitas vezes o colocou em situações embaraçosas. A verdade é que John não existiria sem David. Quando David pensou que teria se livrado de uma profissão de que não gostava, acabou por ceder a vaga a John que o suplantou de forma avassaladora. Será que David sentiu ciúmes por esse sucesso? Complicado? Sim, para David que passou a maior parte da vida tentando explicar ao mundo que ele não era John. A história ficará mais simples quando eu disser que escrevo sobre David Cornwell (1939-2020) e John Le Carré, o pseudônimo de David. Ou seja, a mesma pessoa.
Claro que são elucubrações numa pausa da leitura de “O Túnel de Pombos” (2016), livro em que John Le Carré conta histórias da vida de David com o talento que lhe é peculiar. Não é uma biografia nos moldes tradicionais. Le Carré reuniu fatos engraçados ‒ muitos nem tanto ‒, relevantes e importantes; suas viagens pelo mundo para fundamentar o enredo de seus romances, as entrevistas e a criação de seus personagens.
É, entretanto, no último capítulo que ele desnuda a alma e exibe o garoto abandonado, o adolescente atormentado e a fuga do colégio interno em busca da sua própria história. O surpreendente foi superar o fato de que o pai era um homem sem escrúpulos, golpista com várias passagens pela cadeia e com uma visão de grandeza que estava de longe de ter. Quando David estava com cinco anos a mãe fez a mala e fugiu de casa deixando para trás os dois filhos. Esse pai abusivo teve uma grande preocupação com a educação dos filhos, o que não o impediu de perder no jogo o dinheiro destinado ao pagamento do colégio. E Le Carré só não foi expulso da escola porque o colega de quarto, que era muito rico, deu-lhe um cheque que cobria as mensalidades até o final do ano. Num bilhete, dizia que ele pagaria quando pudesse e se pudesse. O amigo nunca falou do assunto com ele. Le Carré pagou tudo, inclusive com os juros que lhe foram devolvidos com um agradecimento polido.
Por mais que David afirmasse que havia deixado o serviço de sua majestade há muitos anos e ganhava a vida escrevendo, várias vezes foi convocado para resolver problemas que estavam muito longe da sua realidade. Exemplo: certa vez o chamaram porque um jovem ator checo em visita à Inglaterra queria permanecer no país e pediam que ele falasse “com o seu pessoal”. Surpreso com o pedido porque nem tinha “pessoal”, explicou que nada poderia fazer. Insistiram, achando que era má vontade. Ele sugeriu pedido de asilo, mas o jovem não queria porque causaria problemas para amigos e família na então Tchecoslováquia. Depois de muita conversa o ator disse que desejava estudar medicina na Inglaterra, tinha algumas economias. Assim, de repente David tinha um problemão que os amigos achavam que poderia resolver. Ele se esforçou, procurou contatos e conseguiu que o rapaz permanecesse na Inglaterra.Le Carré conta que sem saber direito como aconteceu, ele financiou os estudos e a permanência do rapaz no país e que, após se formar, o médico mudou para o Canadá e se tornou um brilhante pediatra. Ele pagou todo o investimento de David e continuou escrevendo sempre relatando suas realizações.
Gostei muito do livro que me pareceu bem sincero.
“O Túnel de
Pombos: Histórias da Minha Vida”. John Le Carré, Editora Record, 2016.
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