São Paulo do alto do Edifício do Banespa, atual Santanter.
"O menino sorvia tudo. Já se enamorava daquela cidade. Visitar o Museu do Ipiranga aos domingos. Como me sentia pequeno ao lado do monumento, ouvir as histórias da nossa independência ali. E fora ali mesmo que a coisa aconteceu ‒ emoção.
Os passeios de bicicleta. A vila Mariana. A casa era bonita. Revivi cena por cena. Lembrei-me das salas, dos quartos. Na janela de uma delas havia uma bala cravada. Fora a Revolução de 24.
A casa não existe mais. Passei há pouco em frente quando era demolida. Comprei muita coisa. Tinha raízes lá. Trouxe várias peças comigo. São minhas.
A cidade termina logo ali adiante. O bonde “Vila mariana” ia até o fim. Fazia uma curva e voltava. Era lá a casa de dona Adelaide Borba. Depois tudo era mato. Um bondinho, entretanto, ia adiante. O “Bosque da Saúde”. Seguia nele, era como desbravar o desconhecido. Lá longe havia um grande restaurante dentro de um parque. Lembro-me bem.
E os lampiões. Ao anoitecer vinha o homem. Trazia um bastão para acender. Que luz bonita!
(...)
O passado impregnou meu pensamente.
(...)
Lembrei-me do ginásio. O colégio Rio Branco. O São Bento. A turma dos cem. Como é bom rever os colegas do ginásio! Foi ontem e, no entanto, há quanto tempo...
A Leiteria Pereira. Meus colegas tinham licença dos pais para lá tomarem seus lanches. Eu não tinha. Comia meus sanduiches no recreio.
(...)
De um momento para o outro o menino se transformara em rapaz. Depois a decisão. Ser engenheiro. A Politécnica. Meu pai se formara lá. Uma responsabilidade. (...)
O esporte. Nadar no Tietê. Como foi isso possível? Não era esgoto ainda.
Vi-me nos salões do Trianon, nos festivais dançantes de Madame Poças Leitão. Exatamente no Trianon, naquele local onde eu muito mais tarde realizaria a obra de que tanto me orgulho.
Como a cidade tinha sabor. Havia de tudo. Sobrava doçura, encanto.
(...)
Um pensamente contundente me atingiu.
Vi-me prefeito. Como gostaria de devolver a São Paulo seus encantos de outrora. Reconstruir seus jardins. Fazer outros, muitos outros. Sem ruídos, remover a poluição. Propiciar à infância de hoje aquilo que tive. Não permitir que o passado da cidade seja eliminado.
Como cresceu! Que cidade enorme. Parece bravia, incontrolável. Lembra uma potranca chucra. Mesmo assim é bela, altiva. É preciso domá-la aos poucos... Nada de violências. Ela pega marcha. Uma simples questão de tempo."
Excertos da crônica “São Paulo, Fragmentos de Memórias” de João Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994), publicada no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 23 de janeiro de 1972. Figueiredo Ferraz foi professor titular da Escola Politécnica da USP e lecionou em outras universidades; foi ainda Secretário de Obras de São Paulo e Secretário de Transportes do Estado de São Paulo e prefeito de São Paulo (1971-1973). Figueiredo Ferraz era campineiro. (URBIS NOSTRA, de J. C. Carlos Figueiredo Ferraz. EDUSP: PINI, 1991)
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