quarta-feira, 31 de julho de 2024

A PÁLIDA LUZ DA MANHÃ DE INVERNO

A pálida luz da manhã de Inverno,
O cais e a razão
Não dão mais esperança, nem uma esperança sequer,
Ao meu coração.
O que tem que ser
Será, quer eu queira que seja ou que não.

No rumor do cais, no bulício do rio
Na rua a acordar
Não há mais sossego, nem um vazio sequer,
Para o meu esperar.
O que tem que não ser
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

FERNANDO PESSOA, 28-12-1928.

A música é de Antonio Vivaldi (1678-1741): “As quatro estações – Concerto nº4  (Inverno)”.


https://www.youtube.com/watch?v=ICDSY3BErX0

domingo, 28 de julho de 2024

FAULKNER

“Quando eu era criança eu acreditava apaixonadamente que a vida era mais do que só comer e dormir, mais do que limitar a vida de um homem a um minúsculo ponto da superfície terrestre e marcar a passagem de suas horas douradas pelas batidas de um sino. O pouco que a formiga consegue ver do mundo já é bom para ela; e eu com sua visão magnificada uma centena de vezes... o que não seriam para a formiga estes meus olhos! Multiplique pois o limite de minha capacidade visual pelo tamanho da Terra... e eis então você.”

In: “Esquetes de New Orleans – O Mendigo” 1925, William Faulkner (1897-1962). 


Sino da Paz, Pátio do Colégio, SP.






sábado, 27 de julho de 2024

AS TRÊS PRAÇAS

O coração de São Paulo é formado pelo conjunto de três Praças: Clóvis Belilácqua (1859-1944), João Mendes de Almeida Jr. (1856-1923) e Sé, centro geográfico de São Paulo.



Mas a praça é do povo, como se diz por aí. A idosa moradora de rua deve viver nas imediações da Praça João Mendes. Vejo-a raramente e está sempre limpa e arrumada. Ontem, foi dia de lavar roupas. Ignoro onde ela lava as roupas – não creio que seja na fonte da Sé, guardada por dezenas de policiais. Então, como sei que é o dia da lavagem? Simples: ela aproveita os dias ensolarados, abre um velho guarda-chuva e estende as poucas peças molhadas sobre ele; o que sobra ela pode sempre esticar sobre os elementos de proteção de pedestres junto ao meio-fio ou sobre a maleta onde, provavelmente, guarda todas as suas posses. (22/07/2024) 

Os policiais, a mulher e o carrinho. 

Outro dia, outra senhora, não tão idosa como aquela – talvez estivesse na flor dos seus 50 anos. O cenário é a mesma Praça João Mendes, onde ela está sentada no chão e esfrega um lenço ora na testa, ora do nariz, enquanto conversa com um grupo de policiais. Há manchas vermelhas no lenço branco. No ponto do ônibus, tenho um olho na cena e outro na rua por onde o trólebus deve vir (ninguém sabe quando). Tento imaginar o que aconteceu. (Nada jornalístico.) Ela só pode ter caído, os policiais a atenderam e tentam animá-la enquanto aguardam a emergência. Parece calma... Aí vejo um carrinho de compras de duas rodas próximo à cena e imagino que ela se desequilibrou, apoiou-se no carrinho, que seguiu seu rumo, abandonando-a à sua própria sorte! Decido que foi este o acontecido, mas provavelmente não tenha sido nada disso. Fim do meu momento de Mrs. Marple, pois o trólebus apareceu e eu embarquei – e foi de onde tirei a foto.


É um pouco difícil para o pedestre delimitar a praça Clóvis Beviláqua que, em determinado ponto, se mistura com a rua Santa Teresa e ainda se estende após a rua Anita Garibaldi. Tempos atrás no ônibus, um passageiro perguntou ao cobrador se a Praça Clóvis Beviláqua estava no roteiro. O cobrador coçou a cabeça, hesitou, repetiu o nome e resolvi interferir. “Passa, sim” – disse ao senhor e ao cobrador (que está na linha há anos) expliquei que a Praça Clóvis Beviláqua – era a famosa Praça Clóvis. Como a praça é do povo, o povo preferiu abreviar o nome do jurista cearense, um dos responsáveis pela elaboração do Código Civil brasileiro de 1909, e que há muito tempo se tornou íntimo da população de São Paulo. Por ali vê-se de tudo. Como a rodinha animada de jogo em torno de uma bancada tosca sob uma frondosa árvore; há também uma vendedora de cachaça que leva com outras bebidas num isopor. 



quinta-feira, 25 de julho de 2024

CRIME E CASTIGO

 

Eis uma obra extraordinária que, escrita no século XIX, continua instigante. Não se trata apenas de um romance russo, mas de um livro que diz respeito ao ser humano – suas paixões, fraquezas, angústias e necessidades. É um clássico. Aqui, só uma deixa para quem não leu o livro de Dostoiévski (1821-1881), publicada em 1866 em doze capítulos numa revista russa.

“O mais importante é que até o último momento não foi capaz de suspeitar de tal desenlace. Agiu com força até o último instante, sem supor sequer a possibilidade de duas pobres e desamparadas mulheres pudessem fugir de seu domínio. Para isso contribuíram muito a sua vaidade e essa confiança em si mesmo que devia antes se chamar amor-próprio. Piotr Pietrovich, saído do nada, tinha um amor doentio por si mesmo, tinha em grande estima a sua inteligência e as suas aptidões, e até às vezes as solas dos seus sapatos, e apaixonava-se pela sua cara no espelho. Mas acima de tudo neste mundo amava e estimava o seu dinheiro, adquirido à custa de trabalho e todos os meios: punha esse dinheiro ao nível de tudo que considerava superior.

(...)

Dúnia era imprescindível para ele; não podia renunciar a ela, nem sequer podia pensar nisso. Há algum tempo, alguns anos, que vinha pensando com prazer em se casar, enquanto ia acumulando dinheiro e esperava. Sonhava com embriaguez, no mais profundo do seu íntimo, com uma mocinha decente e pobre (tinha fatalmente de ser pobre), muito nova, muito graciosa, boa e instruída, muito pacata, que tivesse passado grandes dificuldades na vida e se encontrasse completamente desamparada perante ele, de maneira a  considerá-lo por toda sua vida... o seu salvador e que se mostrasse submissa, dócil e cheia de admiração para com ele e só por ele. Quantas cenas, quantos doces episódios representava na sua imaginação acerca deste tema sedutor e gracioso, quando descansava das suas ocupações! E eis que o sonho de tantos anos já tinha quase se realizado; a beleza e a educação de Avdótia Românovna o impressionaram; a sua situação de desamparo ainda mais o interessou. Era até mais do que aquilo que sonhara: aparecia-lhe uma moça digna, enérgica, virtuosa, com mais experiência e cultura do que ele próprio (assim o pensava), e era uma criatura assim que ficaria agradecida a ele durante toda a sua vida por seu gesto heróico, e se humilharia docilmente perante ele, ele poderia dominá-la ilimitada e plenamente... Como se fosse de propósito, algum tempo antes, depois de muitos sonhos e expectativas, por fim havia decidido mudar definitivamente de rumo e entrar num círculo de atividades mais amplo e, ao mesmo tempo, pouco a pouco, ir abrindo caminho numa sociedade mais elevada, com a qual havia algum tempo sonhava com prazer...

Enfim, decidiu tentar fortuna em Petersburgo. Sabia que por meio das mulheres pode-se conseguir muito. O prestígio que irradiava uma mulher honrada e culta podia abrir prodigiosamente o seu caminho, granjear-lhe simpatia, criar-lhe uma auréola... e eis que, agora, tudo desabava! Aquela ruptura imprevista, brutal, provocava nele o mesmo efeito que um raio. Aquilo era uma farsa absurda, uma estupidez! Ele não tinha feito mais nada além de mostrar um pouquinho de impertinência, mal tivera tempo de falar. Não fizera mais do que gracejar; distraiu-se um momento, e tudo acabou tão seriamente! E, além disso, à sua maneira, ele amava Dúnia, já a via dominada nos seus sonhos... e, de repente...

Não! Amanhã mesmo, amanhã mesmo é preciso colocar outra vez o problema, procurar um remédio, emendar e, o mais importante... aniquilar esse rapaz insolente que era o culpado de tudo.

Lembrava-se também involuntariamente de Razumíkhin, com uma sensação dolorosa... se bem que, no entanto, não tardasse em se tranquilizar a este respeito: "Era o que faltava, pô-lo em pé de comparação comigo!" Mas era a Svidrigáilov quem no seu íntimo temia seriamente. Em resumo, muitas dificuldades o aguardavam...”



CRIME E CASTIGO – Dostoiévski, Fiódor. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes; L&PM, 2007.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

O TEMPO REDESCOBERTO

 MARCEL PROUST (1871-1922), um autor francês que me assombra...


“A noite estava transparente, o ar parado. Eu imaginava o Sena, a correr entre as pontes circulares, cuja forma seus reflexos alteravam, semelhante ao Bósforo. E, símbolo, seja da invasão prevista pelo sr. de Charlus, seja pela cooperação entre nossos irmãos muçulmanos e os exércitos da França, a lua estreita e curva como um cequim parecia colocar o céu parisiense sob o signo oriental do crescente. Por um instante, o sr. de Charlus deteve-se diante de um senegalês, despedindo-se de mim e segurando-me com força a mão em risco de quebra-la, traço germânico comum em pessoas de seu feitio; continuou por algum tempo a malaxar-ma, para exprimir-me à maneira de Cottard, como se pretendesse restituir a minhas articulações uma elasticidade que não haviam perdido. Para certos cegos, o tato supre, em parte, a vista. Não sei de que sentido fazia agora as vezes. Acreditava talvez o barão apenas apertar-me a mão, como sem dúvida acreditava apenas ver o senegalês, que passava na rua sombria e nem se dignava notar-lhe a admiração. Mas enganava-se em ambos os casos, pecava por excesso de contato e de olhares. ‘Não está ali o Oriente de Decamps, de Fromentin, de Ingres, de Delacroix?’, perguntou-me ainda imobilizado pela passagem do senegalês. “Você sabe, eu só me interesso pelas coisas e pelas criaturas como pintor, como filósofo. E, além do mais, já estou muito velho. Mas é pena que, para completar o quadro, um de nós dois não seja uma odalisca.” Não foi o Oriente de Decamps, nem mesmo o de Delacroix que, quando o barão me deixou, ficou a dançar-me na cabeça, mas o velho Oriente daquelas Mil e uma noites que eu tanto amara; e, perdendo-me aos poucos nos meandros das ruas escuras, pensava no califa Haroun Al Raschid em busca de aventuras nos bairros longínquos de Bagdá.”

“Em busca do tempo perdido – O tempo redescoberto”, Marcel Proust; tradução: Lúcia Miguel Pereira.

Rio Sena, Paris, 2010. Foto: Hilda Araújo.


[Cequim – espécie de lantejoula dourada. Malaxar amassar ou mexer muito (uma substância), para amolecê-la. Dar massagem em.]

terça-feira, 23 de julho de 2024

MALUQUICES JUVENIS

 

Frequentemente, vejo pessoas falando com orgulho do curso de datilografia que fizeram, da Escola Remington (creio que ficava na Praça Rui Barbosa, se não me falha a memória) e da velocidade com que escreviam à máquina. Meu caminho foi inverso. Eu devia ter uns 15 ou 16 anos, quando ganhei uma Lettera 22 e umas explicações básicas sobre o funcionamento dela – o uso do teclado e a troca de fita. Deve ter sido por volta de 1963, quando ganhei um ano sabático, ou seja, fiquei sem ir à escola, mas aproveitei o tempo para ler tudo a que tinha direito e treinar datilografia. Um dos livros foi “Os Sertões”, um desafio tremendo, que enfrentei com a ajuda do dicionário, enorme, de capa azul, que havia ganhado quando entrei no ginásio. Confesso que não me lembro como resolvi o problema de ler, consultar o dicionário e datilografar as palavras pesquisadas naqueles papeizinhos. É um livro muito difícil, com um vocabulário riquíssimo, porém muito específico, pois Euclides da Cunha não se limitou a escrever sobre a história de Canudos e Antônio Conselheiro; ele situou e analisou os acontecimentos de uma forma bem ambiciosa.

Acho que essa foi a única vez em que fiz uma leitura tão organizada. Até hoje uso dicionário e faço anotações, mas à mão em papéis que parecem ter vida própria: desaparecem para reaparecer nos lugares estranhos. O aprendizado da técnica de datilografar fez falta, mas passei a vida escrevendo à máquina sem usar todos os dedos; a velocidade veio com a prática. A era digital não acabou com a datilografia, que continua sendo uma necessidade, com a vantagem de que com o computador / notebook não precisarmos mais de um equipamento pesado, barulhento e que exigia o uso de papel carbono e a troca das fitas, nas horas mais problemáticas. Atualmente, vejo no metrô jovens digitando mensagens no celular apenas com os dois polegares e a uma velocidade espantosa!

Parece que as máquinas de escrever ainda têm um bom mercado. Na internet uma Lettera 22 italiana custa R$ 2.500,00, e uma igual à minha sai por R$ 750,00. O valor da fita vermelha e preta está em torno de R$ 38,00.

Contei ontem a história dessa leitura, porque achei que minhas maluquices começaram cedo; mas essa pelo menos superei logo.(Foto: Internet.)



segunda-feira, 22 de julho de 2024

VESTIDA DE PIRILAMPOS

 

Hoje, o dia é de José Pereira da GRAÇA ARANHA (1868-1931), maranhense (ludovicense), diplomata e escritor pré-modernista, com este texto bucólico e elegante*.

 

"Os primeiros vaga-lumes começavam no bojo da mata a correr as suas lâmpadas divinas... No alto, as estrelas miúdas e sucessivas principiavam também a iluminar... Os pirilampos iam-se multiplicando dentro da floresta, e insensivelmente brotavam silenciosos e inumeráveis nos troncos das árvores como se as raízes se abrissem em pontos luminosos... A desgraçada, abatida por um grande torpor, pouco a pouco foi vencida pelo sono; e deitada às plantas da árvore, começou a dormir... Serenavam aquelas primeiras ânsias da Natureza, ao penetrar no mistério da noite. O que havia de vago, de indistinto, no desenho das coisas transformava-se em límpida nitidez. As montanhas acalmavam-se na imobilidade perpétua; as arvores esparsas na várzea perdiam o aspecto de fantasmas desvairados. No ar luminoso tudo retomava a fisionomia impassível. Os pirilampos já não voavam, e miríades e miríades deles cobriam os troncos das árvores, que faiscavam cravados de diamantes e topázios. Era uma iluminação deslumbrante e gloriosa dentro da mata tropical, e os fogos dos vaga-lumes espalhavam aí uma claridade verde, sobre a qual passavam camadas de ondas amarelas, alaranjadas e brandamente azuis. As figuras das arvores desenhavam-se envoltas numa fosforescência zodiacal. E os pirilampos se incrustavam nas folhas e aqui, ali e além, mesclados com os pontos escuros, cintilavam esmeraldas, safiras, rubis, ametistas e as mais pedras que guardam parcelas das cores divinas e eternas. Ao poder dessa luz o mundo era de um silêncio religioso, não se ouvia mais o agouro dos pássaros da morte; o vento, que agita e perturba, calara-se... Por toda a parte a benfazeja tranquilidade da luz...

Foto: Wikipedia - Criative Commons. 
In: Obra Completa (Canaã). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968. 

domingo, 21 de julho de 2024

"A ARRIBADA"

 

Hoje, um trecho selecionado de “OS SERTÕES”, do engenheiro, jornalista e escritor carioca Euclides da Cunha (1866-1909). Uma obra extraordinária que teve início com a cobertura jornalística que Euclides da Cunha fez da revolta de Canudos (BA) para o jornal O ESTADO DE S. PAULO, mas que ele transformou em livro em que aborda o acontecimento sob várias áreas do conhecimento – geologia, botânica, sociologia e história. Difícil de ler? Sim, um ótimo desafio para quem quer trabalhar com literatura, não importa em que gênero. Fui à estante buscar meu exemplar de 1942 em português arcaico e, quando o abri, encontrei pedacinhos de papel desbotados em que datilografei o vocabulário que pesquisei no dicionário à medida em que lia a obra. Isso nos idos de 1960. Estão amarelados ou desbotados, mas à disposição de uma nova leitura.  Abaixo um excerto da "Arribada".

“Segue a boiada vagarosamente, à cadencia daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas À feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, e derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples.

            E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os o refrão monótono?

E cou mansõ...

E cou... ê caõ!...

ecoando saudoso nos descampados mudos...

Estouro 

da boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, rnredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam0se, e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...

A boiada arranca.

Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.”

Os Sertões (Campanha de Canudos), Euclides da Cunha (1866-1909). Livraria Francisco Alves, 1942.




sábado, 20 de julho de 2024

URSA MAIOR

Mário de Andrade (1893-1945) não pode ficar fora de uma lista de grandes escritores e escolhi uma passagem de “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, um livro surpreendente a cada página. 

“Macunaíma se arrastou até a tepera (sic) sem gente agora. Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio. Ficara defunto sem choro, no abandono completo. Os manos tinham ido-se embora transformados na cabeça esquerda do urubu-ruxama e nem siquer a gente encontrava cunhãs por ali. O silencio principiava cochilando a beira-rio do Uraricoero. Que enfaro! E, principalmente, ah!... que preguiça!...

Macunaíma foi obrigado a abandonar a tapera cuja ultima parede trançada com palha de catolé estava caindo. Mas o impaludismo não lhe dava coragem nem pra construir um papiri. Trouxera a rede pro alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado por debaixo. Amarrou a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela por muitos dias dormindo caceteado e comendo cajus. Que solidão! O próprio séquito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajuru-catinga passara muito afogado por ali. Os papagaios perguntaram pro parente onde que ia.

– Madurou milho na terra dos ingleses, vou pra lá!

Então todos os papagaios foram comer milho na terra dos ingleses. Porém primeiro viraram periquitos porque assim, comiam e os periquitos levavam a fama. Só ficara um aruaí muito falador. Macunaíma se consolou pensamenteando: “O mal ganhado, diabo leva... paciência! Passava os dias enfarado e se distraia fazendo o pássaro repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde a infância. Aaah... Macunaíma bocejava escorrendo caju, muito mole na rede, com as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empeirado nos pés e o papagaio na barriga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas do cajueiro o herói ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o papagaio tirava o bico da asa e tomava o café da manhã devorando as aranhas que de-noite fiavam as teias dos ramos pro corpo do herói. Depois falava:

– Macunaíma!

O dorminhoco nem se mexia.

– Macunaíma! ôh Macunaíma!

– Deixa a gente dormir, aruaí...

– Acorda, herói! É de-dia!

– Ah... que preguiça!...

– Pouca saúde e muita saúva,

Os males do Brasil são!...

Macunaíma dava uma grande gargalhada e coçava a cabeça cheia de pixilinga que é o piolho-de-galinha. Então o papagaio repetia o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de tantas glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contando pro aruaí outro caso mais pançudo. E assim todos os dias.”

MACUNAÍMA, o herói sem nenhum caráter (XVIII URSA MAIOR) – Mário de Andrade. edição crítica Telê Porto Ancona Lopez, 1988.~



sexta-feira, 19 de julho de 2024

"O DELÍRIO"

De repente o mundo descobriu Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Infelizmente, ainda um incompreendido para muitos brasileiros. Aqui, só um aperitivo.

Que me conste, ninguém ainda relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação desses fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

            Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com uns beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de Santo Tomás impressa num volume e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia essa que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília, de certo), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas dentre em pouco a carreira de tal modo se tornou vertiginosa que me atrevia interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.

Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamos não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com gesto peculiar a esses dois quadrúpedes: abanar as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade para saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo.”

(Excerto de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis (1839-1908).





quinta-feira, 18 de julho de 2024

BORGES

"SOU

Sou o que sabe não ser menos vão

Que o vão observador que frente ao mudo

Vidro do espelho segue o mais agudo

Reflexo ou o corpo do irmão.

Sou, tácitos amigos, o que sabe

Que a única vingança ou o perdão

É o esquecimento. Um deus quis dar então

Ao ódio humano essa curiosa chave.

Sou o que, apesar de tão ilustres modos

De errar, não decifrou o labirinto

Singular e plural, árduo e distinto,

Do tempo, que é de um só e é de todos.

Sou o que é ninguém, o que não foi a espada

Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada."

“A reprodução proibida”, óleo sobre tela, de 1937, R. Magritte. Acervo: Museum Boijmans Van Buningen, Países Baixos.


segunda-feira, 15 de julho de 2024

ELE VESTIA AZUL

 

As calçadas, que já foram território seguro dos pedestres, hoje são terra de ninguém. Na soleira, antes de sair, olhe para os dois lados como se estivesse junto ao meio-fio. Nunca se sabe. Uma bicicleta apressada, um entregador de moto em busca de um endereço; ou um skatista esperto. Até um buraco novo, aberto pela chuva ou desgaste por uso indevido. Há, entretanto, outro tipo de perigo para os pedestres. Ontem pela manhã caminhava para a entrada da estação Ana Rosa, onde um rapaz consultava algo no celular. De repente, um ciclista, indo na mesma direção, quase esbarrou em mim, mas o que me surpreendeu mesmo foi a naturalidade com que ele tomou o celular da mão do rapaz, que ficou um segundo parado antes de correr em direção ao ladrão, que deixou a calçada e se perdeu em meio ao trânsito. A vítima logo desistiu da perseguição. Inútil de todo jeito. Andou em direção ao ponto do ônibus, e, desconsolado, apoiou a cabeça, numa mureta... Fiquei pensando no prejuízo e domingo perdido fazendo BO para se prevenir contra golpes, cancelar todos os apps que revelam sua vida... Descrição do ladrão de bicicleta? Eu não vi o rosto dele, assim como o rapaz porque o ciclista sequer diminuiu a marcha. O que eu lembro dele? Só que vestia azul.

"Roda de bicicleta", obra de Marcel Duchamp, acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.


domingo, 14 de julho de 2024

SEM ESTILO

 


Compromisso na Chácara Santo Antônio, zona centro-sul, onde não vou faz tempo. Metrô me parece o transporte mais rápido, embora não conheça esse trecho da Linha Lilás. Desço na estação Borba Gato e me indicam a saída que procuro e lá está a placa: Rua do Estilo Barroco. Que maravilha! E me preparo para construções exageradas, cheias de prosopopeias, mas qual o quê! Tudo simples, jeito de cidade antiga –baixinhas em que funcionam vários tipos de comércio. Outra surpresa – a rua do Cancioneiro Popular, que já conhecia de nome, e mais adiante, a Cancioneiro de Évora, que não se parece com as ruas da cidade portuguesa que conheci anos atrás. Encontro o local procurado e, após o dever cumprido, refaço o caminho ainda com esperança de rever a estátua de Borba Gato, mas nada feito. Aproveito o horário tranquilo para retornar sem o alvoroço da hora do rush.


ACLIMAÇÃO
 
Os funcionários da Prefeitura capricham sempre na limpeza da praça, mas os porcalhões não dão trégua. No dia 7 de julho passado, deixaram a praça limpinha. Fotografei para calcular quanto tempo vai ficar assim - sem papel, embalagens, latas e garrafas. A pracinha fica entre as ruas Paraíso e Armando Ferrentini.







terça-feira, 9 de julho de 2024

FERIADO COM FRIO E GAROA

 


“Como se fosse um traje, esta cidade

Ostenta da manhã a claridade,

O silêncio e a beleza sem par;

Torres e cúpulas se elevam no ar

Em luminosa e suave majestade.”


O poeta inglês William Wordsworth (1770-1850) não se referia a São Paulo.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

DESPEDIDA

 

No início da década de 1980, o Largo Ana Rosa era bem diferente. Havia uma padaria enorme na rua Domingos de Moraes, daquelas tradicionais. Foi lá que esta santista descobriu que em São Paulo pedir uma média no balcão dos pães é um erro imperdoável. Uma vizinha nordestina ia comprar frango vivo num estabelecimento pequeno porque gostava de escolher a ave, que levava embrulhada em jornal e segurava pelos pés. Nos anos 1980, a padaria deu lugar a uma loja Pão de Açúcar que chegou a funcionar 24 horas. Para mim foi muito bom: saía do metrô, fazia compras e descia para a Aclimação.

Nesses anos todos, eu frequentei a loja, onde compro apenas alguns produtos específicos, como frutas, por exemplo. Confesso que adoro supermercados, mas não sou a consumidora do sonho de nenhum deles. Gosto de olhar as gôndolas, os produtos novos, observar os clientes e dar palpites em coisas erradas. Durante a pandemia, foram a minha principal distração.

Quantos funcionários simpáticos e atenciosos do Pão de Açúcar me atenderam nesse período! Como na vez em que esqueci a carteira no caixa e ao chegar em casa recebi um telefonema do gerente me avisando da distração e se desculpando por ter aberto a carteira, onde encontrara um cartão de visitas com meu número. Mais recentemente, paguei no autoatendimento, fui embora sem retirar o cartão na máquina e só no dia seguinte dei por falta dele. Quando cheguei à loja, nem precisei abrir a boca: a funcionária foi me avisando: “A senhora deixou o cartão na máquina. Eu chamei, mas a senhora não ouviu.”   

No programa de emprego de pessoas especiais do PA que, me parece, funciona muito bem, há pelo menos dois funcionários nesta loja. Quando precisei de um produto light, pedi ajuda e um deles me atendeu, mas como havia diversas marcas fiquei em dúvida sobre qual escolher. Ele não hesitou em me indicar a que sempre usa por recomendação da irmã e, conversa vai conversa vem, disse que tinha 40 anos. Queixas? Tive algumas. O que mais me aborreceu? A encomenda de um purê de castanhas portuguesas, que coloquei na geladeira e quando retirei para consumo – imaginem! – tinha virado sopa!!!

Por que estou escrevendo sobre isso? Depois de todos esses anos, a loja encerrará suas atividades no próximo domingo por causa de um mega empreendimento imobiliário que arrasou meio quarteirão da rua Rodrigues Alves e os dois imóveis da esquina com a rua Domingos de Moraes. É verdade que o novo condomínio incluirá o supermercado – e para isso o fechamento deve ter sido resultado de uma longa negociação entre as partes, já que, desde a demolição das casas vizinhas, se falava havia tempos que o supermercado ia fechar.

Soube que todos os funcionários serão remanejados para outras lojas da rede, mas nenhuma próxima de casa... Na verdade, nem posso reclamar porque meu bairro tem muitas opções – mercados, mercadinhos e supermercados, mas...





domingo, 7 de julho de 2024

MISTÉRIOS INSONDÁVEIS

 

Rua São Bento, São Paulo.


“Quantas vezes em ruas apinhadas,

Em meio à multidão, disse a mim mesmo:

‘Mas a cada rosto que passa por mim

Encerra algum mistério insondável!’ [...]

[...] até que as formas visíveis

Tornavam-se visões, como as que fluem

Sobre montes imóveis, ou nos sonhos.”

William Wordsworth (1770-1850).


Los Angeles, 2017.

sábado, 6 de julho de 2024

CAPELA DOS ÍNDIOS


Igrejas me atraem por dois motivos: o silêncio e a arte sacra – que envolve a arquitetura, os vitrais e a imagética. A segunda capela mais antiga de São Paulo encontra-se em São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo. Ela tem uma história interessante, que desconhecia. A Vila de Piratininga, fundada em 1554, não se desenvolvia como os jesuítas esperavam, apesar da convivência pacífica entre europeus e indígenas; entretanto, a vila de Santo André da Borda do Campo, mais antiga, ia muito bem. O padre Manoel da Nóbrega intercedeu junto ao governador geral do Brasil e conseguiu a transferência da vila de Santo André – com pelourinho e tudo mais – para Piratininga.

A manobra não agradou aos indígenas e os descontentes mudaram. Os Guaianases se deslocaram para a região do rio Tietê, formaram a aldeia de Ururaí, onde Anchieta, com ajuda dos índios, ergueu uma capela dedicada a São Miguel Arcanjo que não resistiu por muito tempo; mas em 1622 outra foi construída em taipa de pilão. Ela ficou conhecida como “capela dos índios”. A igrejinha resistiu à ação do tempo e dos humanos. O piso, as janelas e a pia batismal são originais. Em 1974 foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e, em 1991, pelo COMPRESP. Em 2009 com apoio do BNDS, a capela passou por restauro, quando se revelaram e foram recuperados diversos elementos artísticos ocultos ou deteriorados pelo tempo – como pinturas murais feitas em taipa de pilão, atrás dos altares laterais da nave principal; também foram implantados um programa de educação patrimonial e um circuito de visitação, sem esquecer do entorno que também recebeu melhorias.

A Capela de São Miguel Arcanjo pode ser visitada às quintas-feiras e aos domingos. O trem (linha 12) é a melhor opção para chegar a São Miguel Paulista, pois a estação fica perto da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, conhecida como praça do Forró. O homenageado, Padre Aleixo Monteiro Mafra (1901-1967), assumiu em 1941 a paróquia que se resumia à capela. Com a industrialização da região e o crescimento do bairro a arquidiocese resolveu construir uma igreja maior. A pedra fundamental foi lançada em 1952 e a obra concluída em 1965. Padre Aleixo, entretanto, estava afastado da paróquia desde 29 de março de 1964 e faleceu em 1967.



Pia batismal de jacarandá.

LINHA 12 CPTM. Conexão> Metrô Brás,
Fotos: Hilda Araújo.