sábado, 20 de julho de 2024

URSA MAIOR

Mário de Andrade (1893-1945) não pode ficar fora de uma lista de grandes escritores e escolhi uma passagem de “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, um livro surpreendente a cada página. 

“Macunaíma se arrastou até a tepera (sic) sem gente agora. Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio. Ficara defunto sem choro, no abandono completo. Os manos tinham ido-se embora transformados na cabeça esquerda do urubu-ruxama e nem siquer a gente encontrava cunhãs por ali. O silencio principiava cochilando a beira-rio do Uraricoero. Que enfaro! E, principalmente, ah!... que preguiça!...

Macunaíma foi obrigado a abandonar a tapera cuja ultima parede trançada com palha de catolé estava caindo. Mas o impaludismo não lhe dava coragem nem pra construir um papiri. Trouxera a rede pro alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado por debaixo. Amarrou a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela por muitos dias dormindo caceteado e comendo cajus. Que solidão! O próprio séquito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajuru-catinga passara muito afogado por ali. Os papagaios perguntaram pro parente onde que ia.

– Madurou milho na terra dos ingleses, vou pra lá!

Então todos os papagaios foram comer milho na terra dos ingleses. Porém primeiro viraram periquitos porque assim, comiam e os periquitos levavam a fama. Só ficara um aruaí muito falador. Macunaíma se consolou pensamenteando: “O mal ganhado, diabo leva... paciência! Passava os dias enfarado e se distraia fazendo o pássaro repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde a infância. Aaah... Macunaíma bocejava escorrendo caju, muito mole na rede, com as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empeirado nos pés e o papagaio na barriga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas do cajueiro o herói ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o papagaio tirava o bico da asa e tomava o café da manhã devorando as aranhas que de-noite fiavam as teias dos ramos pro corpo do herói. Depois falava:

– Macunaíma!

O dorminhoco nem se mexia.

– Macunaíma! ôh Macunaíma!

– Deixa a gente dormir, aruaí...

– Acorda, herói! É de-dia!

– Ah... que preguiça!...

– Pouca saúde e muita saúva,

Os males do Brasil são!...

Macunaíma dava uma grande gargalhada e coçava a cabeça cheia de pixilinga que é o piolho-de-galinha. Então o papagaio repetia o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de tantas glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contando pro aruaí outro caso mais pançudo. E assim todos os dias.”

MACUNAÍMA, o herói sem nenhum caráter (XVIII URSA MAIOR) – Mário de Andrade. edição crítica Telê Porto Ancona Lopez, 1988.~



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