quinta-feira, 25 de julho de 2024

CRIME E CASTIGO

 

Eis uma obra extraordinária que, escrita no século XIX, continua instigante. Não se trata apenas de um romance russo, mas de um livro que diz respeito ao ser humano – suas paixões, fraquezas, angústias e necessidades. É um clássico. Aqui, só uma deixa para quem não leu o livro de Dostoiévski (1821-1881), publicada em 1866 em doze capítulos numa revista russa.

“O mais importante é que até o último momento não foi capaz de suspeitar de tal desenlace. Agiu com força até o último instante, sem supor sequer a possibilidade de duas pobres e desamparadas mulheres pudessem fugir de seu domínio. Para isso contribuíram muito a sua vaidade e essa confiança em si mesmo que devia antes se chamar amor-próprio. Piotr Pietrovich, saído do nada, tinha um amor doentio por si mesmo, tinha em grande estima a sua inteligência e as suas aptidões, e até às vezes as solas dos seus sapatos, e apaixonava-se pela sua cara no espelho. Mas acima de tudo neste mundo amava e estimava o seu dinheiro, adquirido à custa de trabalho e todos os meios: punha esse dinheiro ao nível de tudo que considerava superior.

(...)

Dúnia era imprescindível para ele; não podia renunciar a ela, nem sequer podia pensar nisso. Há algum tempo, alguns anos, que vinha pensando com prazer em se casar, enquanto ia acumulando dinheiro e esperava. Sonhava com embriaguez, no mais profundo do seu íntimo, com uma mocinha decente e pobre (tinha fatalmente de ser pobre), muito nova, muito graciosa, boa e instruída, muito pacata, que tivesse passado grandes dificuldades na vida e se encontrasse completamente desamparada perante ele, de maneira a  considerá-lo por toda sua vida... o seu salvador e que se mostrasse submissa, dócil e cheia de admiração para com ele e só por ele. Quantas cenas, quantos doces episódios representava na sua imaginação acerca deste tema sedutor e gracioso, quando descansava das suas ocupações! E eis que o sonho de tantos anos já tinha quase se realizado; a beleza e a educação de Avdótia Românovna o impressionaram; a sua situação de desamparo ainda mais o interessou. Era até mais do que aquilo que sonhara: aparecia-lhe uma moça digna, enérgica, virtuosa, com mais experiência e cultura do que ele próprio (assim o pensava), e era uma criatura assim que ficaria agradecida a ele durante toda a sua vida por seu gesto heróico, e se humilharia docilmente perante ele, ele poderia dominá-la ilimitada e plenamente... Como se fosse de propósito, algum tempo antes, depois de muitos sonhos e expectativas, por fim havia decidido mudar definitivamente de rumo e entrar num círculo de atividades mais amplo e, ao mesmo tempo, pouco a pouco, ir abrindo caminho numa sociedade mais elevada, com a qual havia algum tempo sonhava com prazer...

Enfim, decidiu tentar fortuna em Petersburgo. Sabia que por meio das mulheres pode-se conseguir muito. O prestígio que irradiava uma mulher honrada e culta podia abrir prodigiosamente o seu caminho, granjear-lhe simpatia, criar-lhe uma auréola... e eis que, agora, tudo desabava! Aquela ruptura imprevista, brutal, provocava nele o mesmo efeito que um raio. Aquilo era uma farsa absurda, uma estupidez! Ele não tinha feito mais nada além de mostrar um pouquinho de impertinência, mal tivera tempo de falar. Não fizera mais do que gracejar; distraiu-se um momento, e tudo acabou tão seriamente! E, além disso, à sua maneira, ele amava Dúnia, já a via dominada nos seus sonhos... e, de repente...

Não! Amanhã mesmo, amanhã mesmo é preciso colocar outra vez o problema, procurar um remédio, emendar e, o mais importante... aniquilar esse rapaz insolente que era o culpado de tudo.

Lembrava-se também involuntariamente de Razumíkhin, com uma sensação dolorosa... se bem que, no entanto, não tardasse em se tranquilizar a este respeito: "Era o que faltava, pô-lo em pé de comparação comigo!" Mas era a Svidrigáilov quem no seu íntimo temia seriamente. Em resumo, muitas dificuldades o aguardavam...”



CRIME E CASTIGO – Dostoiévski, Fiódor. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes; L&PM, 2007.

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