“O
mais importante é que até o último momento não foi capaz de suspeitar de tal
desenlace. Agiu com força até o último instante, sem supor sequer a possibilidade
de duas pobres e desamparadas mulheres pudessem fugir de seu domínio. Para isso
contribuíram muito a sua vaidade e essa confiança em si mesmo que devia antes
se chamar amor-próprio. Piotr Pietrovich, saído do nada, tinha um amor doentio
por si mesmo, tinha em grande estima a sua inteligência e as suas aptidões, e até
às vezes as solas dos seus sapatos, e apaixonava-se pela sua cara no espelho. Mas
acima de tudo neste mundo amava e estimava o seu dinheiro, adquirido à custa de
trabalho e todos os meios: punha esse dinheiro ao nível de tudo que considerava
superior.
(...)
Dúnia
era imprescindível para ele; não podia renunciar a ela, nem sequer podia pensar
nisso. Há algum tempo, alguns anos, que vinha pensando com prazer em se casar,
enquanto ia acumulando dinheiro e esperava. Sonhava com embriaguez, no mais
profundo do seu íntimo, com uma mocinha decente e pobre (tinha fatalmente de
ser pobre), muito nova, muito graciosa, boa e instruída, muito pacata, que
tivesse passado grandes dificuldades na vida e se encontrasse completamente
desamparada perante ele, de maneira a considerá-lo por toda sua vida... o seu
salvador e que se mostrasse submissa, dócil e cheia de admiração para com ele e
só por ele. Quantas cenas, quantos doces episódios representava na sua
imaginação acerca deste tema sedutor e gracioso, quando descansava das suas
ocupações! E eis que o sonho de tantos anos já tinha quase se realizado; a
beleza e a educação de Avdótia Românovna o impressionaram; a sua situação de
desamparo ainda mais o interessou. Era até mais do que aquilo que sonhara:
aparecia-lhe uma moça digna, enérgica, virtuosa, com mais experiência e cultura
do que ele próprio (assim o pensava), e era uma criatura assim que ficaria
agradecida a ele durante toda a sua vida por seu gesto heróico, e se humilharia
docilmente perante ele, ele poderia dominá-la ilimitada e plenamente... Como se
fosse de propósito, algum tempo antes, depois de muitos sonhos e expectativas, por
fim havia decidido mudar definitivamente de rumo e entrar num círculo de atividades
mais amplo e, ao mesmo tempo, pouco a pouco, ir abrindo caminho numa sociedade
mais elevada, com a qual havia algum tempo sonhava com prazer...
Enfim,
decidiu tentar fortuna em Petersburgo. Sabia que por meio das mulheres pode-se
conseguir muito. O prestígio que irradiava uma mulher honrada e culta podia abrir
prodigiosamente o seu caminho, granjear-lhe simpatia, criar-lhe uma auréola...
e eis que, agora, tudo desabava! Aquela ruptura imprevista, brutal, provocava
nele o mesmo efeito que um raio. Aquilo era uma farsa absurda, uma estupidez!
Ele não tinha feito mais nada além de mostrar um pouquinho de impertinência,
mal tivera tempo de falar. Não fizera mais do que gracejar; distraiu-se um
momento, e tudo acabou tão seriamente! E, além disso, à sua maneira, ele amava
Dúnia, já a via dominada nos seus sonhos... e, de repente...
Não!
Amanhã mesmo, amanhã mesmo é preciso colocar outra vez o problema, procurar um
remédio, emendar e, o mais importante... aniquilar esse rapaz insolente que era
o culpado de tudo.
Lembrava-se
também involuntariamente de Razumíkhin, com uma sensação dolorosa... se bem
que, no entanto, não tardasse em se tranquilizar a este respeito: "Era o
que faltava, pô-lo em pé de comparação comigo!" Mas era a Svidrigáilov quem
no seu íntimo temia seriamente. Em resumo, muitas dificuldades o aguardavam...”
CRIME
E CASTIGO – Dostoiévski, Fiódor. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes;
L&PM, 2007.
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