quarta-feira, 24 de julho de 2024

O TEMPO REDESCOBERTO

 MARCEL PROUST (1871-1922), um autor francês que me assombra...


“A noite estava transparente, o ar parado. Eu imaginava o Sena, a correr entre as pontes circulares, cuja forma seus reflexos alteravam, semelhante ao Bósforo. E, símbolo, seja da invasão prevista pelo sr. de Charlus, seja pela cooperação entre nossos irmãos muçulmanos e os exércitos da França, a lua estreita e curva como um cequim parecia colocar o céu parisiense sob o signo oriental do crescente. Por um instante, o sr. de Charlus deteve-se diante de um senegalês, despedindo-se de mim e segurando-me com força a mão em risco de quebra-la, traço germânico comum em pessoas de seu feitio; continuou por algum tempo a malaxar-ma, para exprimir-me à maneira de Cottard, como se pretendesse restituir a minhas articulações uma elasticidade que não haviam perdido. Para certos cegos, o tato supre, em parte, a vista. Não sei de que sentido fazia agora as vezes. Acreditava talvez o barão apenas apertar-me a mão, como sem dúvida acreditava apenas ver o senegalês, que passava na rua sombria e nem se dignava notar-lhe a admiração. Mas enganava-se em ambos os casos, pecava por excesso de contato e de olhares. ‘Não está ali o Oriente de Decamps, de Fromentin, de Ingres, de Delacroix?’, perguntou-me ainda imobilizado pela passagem do senegalês. “Você sabe, eu só me interesso pelas coisas e pelas criaturas como pintor, como filósofo. E, além do mais, já estou muito velho. Mas é pena que, para completar o quadro, um de nós dois não seja uma odalisca.” Não foi o Oriente de Decamps, nem mesmo o de Delacroix que, quando o barão me deixou, ficou a dançar-me na cabeça, mas o velho Oriente daquelas Mil e uma noites que eu tanto amara; e, perdendo-me aos poucos nos meandros das ruas escuras, pensava no califa Haroun Al Raschid em busca de aventuras nos bairros longínquos de Bagdá.”

“Em busca do tempo perdido – O tempo redescoberto”, Marcel Proust; tradução: Lúcia Miguel Pereira.

Rio Sena, Paris, 2010. Foto: Hilda Araújo.


[Cequim – espécie de lantejoula dourada. Malaxar amassar ou mexer muito (uma substância), para amolecê-la. Dar massagem em.]

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